À Sombra do Cajueiro: Conversas de Zé Toco e Pitoco sobre a Esposa e a Amante

Em uma tarde quente no sertão de Serra Dourada, na Bahia, Zé Toco e Pitoco encontravam-se à sombra de um velho cajueiro, à beira da estrada poeirenta que cortava a pequena comunidade. Zé Toco, um homem de rosto marcado pelo sol e olhos que pareciam guardar segredos do sertão, fumava seu cigarro de palha com a tranquilidade de quem vive na paz dos dias simples. Pitoco, ao contrário, tinha o semblante inquieto, os olhos sempre à espreita como quem busca por algo que nunca alcança.

Pitoco quebrou o silêncio com uma tosse seca e, depois de cuspir no chão, disse: “Zé, tu já leu aquela crônica do Rubem Alves sobre a esposa e a amantes?

Zé Toco coçou a barba rala, pensativo, antes de responder com um sorriso malandro: “amante é aquela que amamos diferente da esposa’, segundo ele, né?

Pitoco assentiu, fitando o horizonte onde o sol começava a se pôr na boca da noite. “É isso mesmo. Diz que ‘marido’ ama de verdade a amante porque com a esposa é só contrato. Eles não precisam se amar de verdade! A esposa é no casamento uma relação de negócio!

Zé Toco deu uma tragada profunda no cigarro antes de continuar: ” Rubem Alves era um pastor doído, Pitoco. Mamãe dizia que pra Igreja de bom Jesus da Lapa, casamento é sacramento. Coisa de Deus.”

Pitoco parecia incomodado, remexendo a poeira com a ponta da bota. “E se um não ama mais o outro? É complicado, Zé. Às vezes o amor some, mas o contrato tá lá, firme e forte. Se separa o cabra fica até sem cuecas!

Zé Toco olhou para Pitoco com um ar de quem entendia das coisas da vida e dos sacramentos da igreja. “Pois é, meu amigo. A Igreja diz que o que Deus ajuntou, ninguém separa. Mas se separa, é porque Deus não juntou.”

Pitoco suspirou, como se aquilo trouxesse à tona algo que ele preferia esquecer. “Eu, por exemplo, tenho a Antônia e a Rosinha. Antônia é minha mulher, Rosinha é… bem, é outra história.”

Zé Toco riu baixinho, balançando a cabeça. “Ah, Pitoco, você e suas confusões. Antônia e Rosinha sabem uma da outra?”

Pitoco coçou a nuca, desconfortável. “Antônia desconfia. Às vezes briga, mas a gente segue em frente. Rosinha é… bom, é diferente. É como o Rubem Alves falou, Zé. Rosinha é minha ‘amante’. A gente se ama de outro jeito. É ela que me faz gemer sem sentir dor “.

Zé Toco olhou para o céu tingido de laranja pelo sol poente e pela poeira da estrada, pensativo. “É, Pitoco. A vida é complicada mesmo. Às vezes a gente acha amor onde não esperava. E aí fica esse negócio todo, de contratos e sacramentos.”

Os dois amigos ficaram em silêncio por um tempo, ouvindo apenas o barulho distante dos pássaros e o vento que balançava as folhas do cajueiro. Era como se, naquele pequeno recanto de Serra Dourada, as palavras do Rubem Alves ganhassem vida, ecoando entre os dois homens que compartilhavam suas histórias de amor, de contratos e de um sertão onde o tempo passava manso, carregado de histórias por contar.


Amantes

Por Rubem Alves

Gosto da palavra “amantes”. Amantes são aqueles que se amam. Os amantes, separados pela distância, sentem saudades… Alegram-se com a memória do rosto da pessoa amada. Diferente das palavras “marido” e “esposa”.
Para se ser “marido” e “esposa” não é preciso amar. Ouvi de um padre, na sua homilia aos noivos: “O que os une não é o seu amor. É o contrato”.


Padre ortodoxo aquele. Conhecia bem a teologia da Igreja. Porque, para a Igreja, o que une as pessoas não é o que elas sentem. É o ato sacramental que o sacerdote executa. É a Igreja que estabelece a união matrimonial.
Sacramentos são atos que um sacerdote executa, em nome de Deus. Por tanto, é Deus que executa. E se é Deus que executa, não pode ser desfeito.


“Aquilo que Deus ajuntou não o separe o homem.” A rejeição do divórcio por parte da Igreja nada tem a ver com o seu amor pela família. O que está em jogo é o poder divino da Igreja para unir. Se ela aceitasse o divórcio, estaria confessando que o sacramento do matrimônio não é coisa divina.


E, com isso, estaria se desqualificando como legítima representante de Deus. Acho que o certo seria dizer: “Aquilo que Deus ajuntou o homem não separa. Se separou é porque Deus não juntou…”.

Essa mini crônica de Rubem Alves, encontra se no Livro: Ostra Feliz não faz pérola, p, 78.


Análise Hermenêutica da crônica amantes

Rubem Alves, renomado educador e pensador brasileiro, em seu texto “Amantes”, utiliza uma análise hermenêutica que transcende os limites convencionais com profundas reflexões sobre os conceitos de amor, casamento e instituição religiosa.

Alves contrapõe os termos “amantes” e “marido/esposa”, destacando a carga emocional e a conexão íntima que os primeiros evocam. Para ele, “amantes” são aqueles que se amam verdadeiramente, independentemente de formalidades ou contratos. A distância entre eles apenas intensifica o sentimento de saudade e alegria na lembrança do rosto amado. Em contraste, o autor critica a ideia de que ser “marido” e “esposa” não necessariamente implica amar, citando a visão de um padre que enfatiza o contrato como a base do casamento, não o amor.

A crítica de Alves à posição da Igreja sobre o casamento é sutil, mas profunda. Ele aponta que, para a instituição religiosa, o vínculo matrimonial não é essencialmente baseado no amor entre as pessoas, mas sim no sacramento realizado pelo sacerdote em nome de Deus. Essa visão sacramental implica que é Deus quem une as pessoas, tornando o casamento indissolúvel pela intervenção humana. Para a Igreja, a aceitação do divórcio seria negar a própria divindade do sacramento matrimonial.

Ao sugerir que “Aquilo que Deus ajuntou o homem não separa. Se separou é porque Deus não juntou…”, Alves questiona implicitamente a rigidez da instituição eclesiástica frente às realidades humanas e afetivas. Ele sugere que a Igreja poderia estar se distanciando de uma visão mais empática e humana do casamento ao adotar uma postura tão inflexível.

A narrativa de Rubem Alves se manifesta na habilidade de entrelaçar reflexões filosóficas com exemplos concretos e uma linguagem acessível, capturando tanto a complexidade teológica quanto a simplicidade das relações humanas. Sua mini crônica nos convida a uma reflexão profunda sobre o significado do amor, da união e da religiosidade, desafiando concepções estabelecidas e propondo uma visão mais flexível e humanizada das relações interpessoais.

João Guató

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