O MAIS INUSITADO DISCURSO ELEITORAL
Professor Dr. Elismar Bezerra Arruda
A necessidade tem sempre um fundamento material, é tentativa de enfrentar e vencer um desfio vital; a necessidade impulsiona corpo e mente a serem mais que estão sendo. Antes dos celulares, redes sociais e essa parafernália toda que endoidou as formas das comunicações e os conteúdos difundidos, as mensagens tinham que ser enviadas de viva voz ou mediante instrumentos bem simples, analógicos, quase artesanais – à vista do que temos hoje. Para fazer um discurso em público, o orador precisava saber falar, ou, pra não passar vergonha, nem se arriscava; é que naquele tempo, as pessoas tinham vergonha de parecerem desinteligentes, ignorantes, “analfabetas”.
Antes da internet e suas redes sociais, a ignorância era motivo de vergonha e acanhamento, de forma que ser alcunhado de “analfabeto” era o suprassumo do desprestígio. Assim, nas campanhas eleitorais, todo candidato precisava e se esforçava para parecer mais “sabido”, inteligente, bem informado, especialmente nos comícios, quando o discurso precisava ser bem aquilatado, rebuscado, e a voz bem empostada. Ali, cada um buscava mostrar suas qualidades intelectuais, sua “instrução” elevada, para se distinguir por estes atributos desossados, dos adversários aos olhos dos eleitores; de modo que essa caricaturização de si, pudesse fazer o adversário parecer xucro, inferior e “analfabeto”.
As campanhas eram animadas por marchinhas autorais, que perseguiam dois objetivos, na mesma toada: exaltar as supostas qualidades de um candidato e desqualificar, ridicularizando, o adversário por todos os seus supostos defeitos. Lembro de uma, de um candidato à prefeitura lá das bandas do Araguaia, nos anos de 1970, que era terrível, cheia de preconceitos, misturava humor com crítica ácida, na tentativa de desqualificar o adversário. Assim, atribuía feiura às especificidades físicas do adversário, destacava sua baixa escolaridade, indicando supostas limitações intelectuais, impeditivas ao exercício do cargo; dizia assim: “…o homem para prefeito, não pode ser atrasado, não pode ser analfabeto e nem também ter os pés papagaiado…”; hoje, talvez a marchinha fosse proibida, por seus elementos discriminatórios etc.
Mas, esta história se deu noutra região de Mato Grosso e em tempos mais recentes, aqui pra bandas de Rondonópolis, no outono de uma antiga cidade de garimpo, que foi muito buliçosa no início do século passado, sob o fascínio dos diamantes…
O outono aqui, em tempos idos, mais que separar o verão do inverno, apresentava-se por elementos leves, como se pranas que se deixam levar no vento geral, querendo primaverar o mundo. Os céus dos sertões mato-grossenses tinham menos negócios e mais poesia e poeira, lua e estrelas – que, especialmente nas noites de plenilúnio, encantavam – e bichos: em árvores de beira de rios e lagos, nos ares, nos caminhos e entre aquela vegetação única do cerrado. Naquele então, quando não existia esse tal Musk, via-se uns poucos satélites cruzando as imensidões dos céus, que eram mais imensas nas noites sem nuvens de chuva e frio; eles iam pelo céu, como se deslizassem, perdidos de algum destino sem endereço conhecido…
As cidades interioranas tinham um poético desinteresse de ser mais que lugar de se viver e sonhar, que se materializavam por duras jornadas de trabalho duro, quase nada mecanizado; que davam ganhos suficientes só para “o seguir vivendo”, sem sobras para o ajuntamento de fortunas. As capitais e os grandes centros urbanos, sim, eram os lugares do capital, das complexas e monumentais transações comerciais; no sertão, não. Quer dizer, não daquele jeito, desmedidos; e de acertos sem o entreolhar de conhecidos, de palavra dada e respeitada, mais que papel. Assim, na velha cidadezinha, com lembranças desmoronadas nos antigos vestígios do viver passado, corriam os burburinhos da campanha pra prefeito e vereador: aqueles reboliços todos de candidatos, de cabo-eleitoral e puxa-saco; de santinhos jogados ao léu, esparramados no chão das ruas descalças, na esperança de algum eleitor se interessar; de carros-de-som esgoelando promessas de tempo e governos bons; de cartazes pregados nos postes-de-luz, com caras cheias de pó, que dificultava reconhecer o sujeito, especialmente a candidata, embelezada além do que era real. À noite comícios e discursos.
Mas, foi num dia desses de sol a pino, que se deu aquele comício…
Calor de rachar mamona na sombra. No salão cheio de gente e cheiro de comida, tudo era mais quente e abafado, abrasado pelo telhado baixo, de Eternit. Suor. Churrasco. Som alto, música, avisos, recados. Com a orientação do locutor oficial, todos se dirigem pra fora, porque ia começar o comício. A robustez do caminhão de som, tipo trio-elétrico, contrastava com a simplicidade do derredor. Um a um os candidatos e candidatas são chamados a subir no “palanque”, sob aplausos de apoiadores. Candidatos a prefeito, vice-prefeito e vereador olham tudo e todos “de cima pra baixo”, como é próprio dos que estão “por riba”. Sob o anúncio empolgado do locutor, os discursos vão se repetindo à exaustão, cada um fala até 3 minutos – que, para serem respeitados, puxava-se a parte de trás da camisa do falador.
Quase uma hora da tarde, o locutor anuncia: “Agora vai falar a nossa candidata, a futura vereadora…!” Sob uns aplausos minguados, a candidata toma o microfone com as duas mãos e fica em silêncio sepulcral, por uns eternos 20 segundos; ao mesmo tempo, um conhecido professor da comunidade se posiciona atrás dela. Fico a observar a situação, sem entender nada: a moça com o microfone na altura da boca com batom vivo, olhando fixamente pro além, em silêncio, com o professor escondido atrás de si, segurando uma folha de caderno de arame pequeno. Daí, em voz baixa, quase sem mover os lábios, o professor começa a ler, em voz baixa, o escrito no papel: “Senhoras e Senhores, boa tarde!” Incrédulo, vi a candidata repetir fielmente, discursando: “Senhoras e Senhores, boa tarde! Vocês todos me conhecem…”. Seguem assim, até esgotar os seus três minutos, quando arrematam: “Conto com o voto de todos vocês! Muito obrigada!” Aplaudida mais que quando foi anunciada, entrega o microfone pro locutor oficial e olha pra nós num misto de alívio e satisfação, como se indagando o que achamos da sua performance; demos os parabéns de elogios etc. Não sei se os eleitores perceberam aquele estratagema, nem se ela conseguiu se eleger; mas, nenhum de nós, do palco, jamais tínhamos visto algo parecido, original, de uma simplicidade inocente e terna: a expressão singular e autêntica da espiritualidade da nossa boa gente – ao mesmo tempo tão vulnerável à degeneração corrupta dos interesses não-republicanos