Tiro no Coração da Injustiça: A Dor e o Racismo no Atendimento aos Guarani-Kaiowá

O sol já se escondeu por trás das colinas de Douradina, no Mato Grosso do Sul, mas o calor que marca o coração da violência e do desamparo ainda não se escondeu. O agronegócio e a bancada da bala, com sua força desmedida e sem piedade, continuam sua atuação devastadora sobre os povos indígenas. Na penumbra do início de agosto, o jovem E. Kaiowá, de 20 anos, é atingido por uma bala que não deveria ser sua. No peito do jovem, o tiro não encontrou o alvo mortal, mas alojou-se na sua cabeça, um fragmento de dor e de injustiça que transcende o mero ferimento físico.

Era 3 de agosto quando a comunidade Guarani-Kaiowá, já exausta de conflitos, enfrentou mais um ataque brutal promovido por jagunços. A retomada da terra, um ato de resistência e de sobrevivência, tornou-se o cenário de um novo massacre. E. Kaiowá, junto a outros dez indígenas, foi ferido. Desde então, aguarda em uma casa de parente, na Terra Indígena Panambi – Lagoa Rica, pela transferência para um hospital com infraestrutura adequada, enquanto a bala repousa em seu crânio.

O Hospital da Vida, em Dourados, a cerca de 40 quilômetros do local do ataque, foi o primeiro destino do jovem. Lá, uma cena de horror não foi protagonizada apenas pela bala em sua cabeça, mas pelo desprezo e racismo disfarçados de “atendimento médico”. “O tiro deveria ter acertado o meio do peito”, escutou o jovem de um policial militar que estava no hospital. As palavras, imbuídas de um ódio disfarçado de frieza profissional, revelam a crueldade que se esconde nas entrelinhas do sistema de saúde.

Para E. Kaiowá, a dor não é apenas física. É o peso do racismo e da hostilidade institucionalizada. Ao longo dos anos, a comunidade Guarani-Kaiowá tem sido vítima de um ciclo de violência que não se limita aos campos de batalha, mas se estende às salas de espera dos hospitais. O jovem, assim como outros indígenas feridos, enfrentou um atendimento permeado por desdém e desumanização. A jornada de G. Kaiowá, de 23 anos, que levou um tiro de borracha no peito, é um reflexo sombrio desta realidade. No Hospital da Vida, ele foi chamado de “invasor de terra” por um médico. “Eu estava com dor e fiquei quieto. Só queria ir embora de lá”, revelou, carregando em seu peito a ferida e a vergonha.

Valdelice Veron, antropóloga e líder indígena, descreve a realidade angustiante com precisão dolorosa. “A gente sai da aldeia porque a gente precisa. Só a maneira que olham pra gente já nos mata um pouco”, afirma, recordando o trágico assassinato de seu pai, Marcos Verón. O que para muitos seria um atendimento médico normal, para os indígenas é uma cena de agressão e hostilidade, um massacre mascarado de atendimento.

O medo que os indígenas têm ao procurar atendimento médico é um reflexo de um sistema que frequentemente se torna um tribunal de julgamento contra aqueles que já carregam feridas profundas. Matias Benno Rempel, coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), aponta a gravidade do problema: “O medo que os indígenas têm de adentrar hospitais é o medo que eles têm de transitar em qualquer âmbito de uma sociedade de extermínio”. Esta sociedade, que deveria ser de cura e alívio, transforma-se muitas vezes em um campo de batalha adicional.

O desamparo e a falta de empatia não param por aí. A Secretaria de Estado de Saúde do Mato Grosso do Sul, assim como a prefeitura de Dourados, se esquivam de uma resposta concreta às acusações de racismo e maltrato. O Ministério Público Federal, até o momento, permanece em silêncio sobre possíveis inquéritos.

Enquanto E. Kaiowá aguarda por uma transferência para o Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer, no Rio de Janeiro, a incerteza paira sobre sua recuperação e futuro. A família e as organizações sociais que acompanham o caso temem que a falta de atendimento adequado em Dourados possa comprometer ainda mais a saúde do jovem.

A luta dos Guarani-Kaiowá é uma batalha constante, não apenas pela terra, mas pela dignidade e pelo respeito que são constantemente negados. A história de E. Kaiowá é mais do que a de um jovem ferido; é um grito por justiça em um sistema que frequentemente falha em ver o humano por trás do indígena.

E, assim, no calor do Mato Grosso do Sul, onde o sol se põe e a dor persiste, a história continua a ser contada. O que resta, agora, é esperar que a justiça se erga e que a humanidade, ainda adormecida, desperte para a realidade dos que sofrem em silêncio.

Fonte: Reportagem de Leandro Barbosa, Intercept Brasil

João Guató

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