Da Dureza De Tudo Sustentar Para Sustentarmo-Nos

Prof. Dr. Elismar Bezerra Arruda

Quando olhamos os passarinhos, em admiração aos seus voos, seus cantos e cores, prestando atenção em seus movimentos, vemo-los comendo ou buscando comida, copulando para o próprio eternizar, e descansando – porque todos precisam de um descanso. Também os bichos que não voam, nem cantam: comem, acasalam-se, descansam e brincam. Vi, dias atrás, um vídeo de um porco na carroceria de um caminhão que o levava como carga para o abate em algum frigorífico, tentando se acasalar: porque o prazer é o riso-alegria do corpo, em ridicularização à sisudez terminal da morte.

E nós, humanos?

Desde quando nos perguntamos, em face da natureza e premidos por nossas necessidades vitais, imediatas, o porquê das coisas – perguntamos a nós mesmos: quem somos? A pergunta, como se vê, é determinada pela necessidade e pelo interesse. Gramsci, o grande revolucionário e pensador italiano defende, em sua belíssima obra escrita no cárcere, que a pergunta fundamental da Filosofia é: o que é o homem? Observa, entretanto, que a pergunta não se refere ao indivíduo particular, ao indivíduo em si, por sua constituição física – ainda que a individualidade tenha a máxima importância; refere-se ao que o homem pode ser, e se pode fazer-se, transformar-se a si mesmo, sua materialidade, sua espiritualidade, por suas próprias ações. Saber o que somos e estamos sendo, refere-se, então, ao devir, por conseguinte, ao vir a ser.

Com efeito, a pergunta e as possibilidades de resposta, referenciam-se e só podem se referenciar nas vivências humanas, nas experiências desenvolvidas nos mais diversos ambientes; de modo que, extrapolando o indivíduo particular, remete-nos ao outro, coletivo, isto é, às presenças ativas dos diversos sujeitos sociais no mundo, desde a realidade imediata. Presenças que se efetivam mediante determinadas relações sociais, as quais materializam o processo humano, a história; nas quais e pelas quais, o humano é elaborado. Noutros termos, o homem devém – é um processo; ou, como dirá Marx, o homem faz-se, mas não segundo sua vontade ou desejo particular: o seu Ser é a síntese de múltiplas determinações, notadamente das relações estabelecidas para produzir suas condições de vida, etc.

Emerge nesse processo, imperiosamente, o caráter cooperativo da atividade humana no mundo, desde o seu primeiro ato revolucionário, que foi garantir a própria sobrevivência – que, de início, deu-se pela coleta do que se punha ao alcance da mão; depois, pela produção das condições materiais de vida, desenvolvendo a agricultura e a criação de animais etc. Com a complexificação desse processo produtivo, pelo desenvolvimento de mais capacidade para ler, interpretar e transformar a natureza, isto é, pelo desenvolvimento do conhecimento, dá-se o afastamento do homem das determinações da natureza, de forma cada vez mais ampla, rápida e sofisticada. Cria-se, assim, e se desenvolve, a natureza humana: impactando, modificando, recriando, as paisagens naturais em níveis e amplitudes correspondentes ao revolucionamento das paisagens econômico-sociais. A nossa história é de uma complexidade belíssima…

Com mais capacidade para produzir, produziu-se além das necessidades imediatas, de modo a emergir, nessa sociedade, a sua divisão entre governantes e governados; divisão que emerge como elemento orgânico, como fruto, da nova materialidade econômico-social, determinada pela existência de proprietários e despossuídos. Desvinculados da produção direta, os proprietários, os que se apropriaram dos meios de produção fundamentais, desvincularam-se das atividades produtivas diretas, passando a só administrá-las, inclusive através de prepostos. Por outro lado, consequentemente, os não-proprietários daqueles meios, só puderam viver ou sobreviver trabalhando para aqueles. Tem-se assim, uma sociedade que se desenvolve dividida entre dois grupos sociais com necessidades e interesses antagônicos, cuja convivência será marcada por conflitos cada vez mais duros e amplos – a que se denominou de luta de classe

Para governar essa sociedade, emerge na história a figura do Estado: um instrumento que, mediante o convencimento e a violência, expressa, difunde e garante o cumprimento da ordem dominante – cujo conteúdo é a necessidade e interesse da classe dos proprietários, confrontados pelas necessidades e interesses dos Trabalhadores. Ora, para realizar essa governabilidade, impõe-se a necessidade de ações, meios e procedimentos específicos, capazes de articular convencimento e violência, no sentido de conformar as massas trabalhadoras na ordem da classe proprietária. Com efeito, quantias cada vez maiores de recursos são necessárias ao Fundo Público, para que o Estado, os Governos, possam custear as políticas requeridas para a governabilidade da sociedade dividida: seja para sustentar as demandas das massas por saúde, educação, lazer, infraestrutura, assistência, etc.; seja para organizar e manter as forças repressivas (policiais, demais forças repressivas, judiciário, o sistema de prisões, etc.) imprescindíveis para conter e dissuadir os conflitos sociais e atitudes dos “inconformados”. O que são esses recursos, senão uma parte das riquezas produzidas diretamente pelos trabalhadores, sob a direção do empresário, recolhidas na forma do que se denomina de impostos?

Todo mundo sabe, que um empresário, ao investir R$ 100,00 (Cem Reais), espera e organiza seu negócio para que haja retorno do valor investido, mais a sua remuneração – ou seja, todos os custos necessários para produzir determinada mercadoria, precisam ser cobertos pelo respectivo processo produtivo, que o Empresário administra e o Trabalhador realiza – de modo que, ao fim, o empresário tenha de volta não apenas os seus R$ 100,00, mas, também, os juros ou lucros auferidos. Isto significa que, também a parte dos impostos que cabe ao Empresário pagar, está inclusa naqueles “custos de produção”; de maneira que não é nenhum pecado dizer que nenhum imposto sai do bolso do empresário. Com efeito, é justo, correto e necessário dizer, que todos os impostos são pagos com o trabalho do Trabalhador; mas, quem vemos reclamar da “carga tributária”, é o empresário. Amigo meu, compadre Quelemém, depois de assuntar isso bem, diria: “Óia, tem gente que é, que nem gato: é mamando e miando; pra dizer pra quem vê, que a comida é pouca e num tá lhe dando sustança…”

Esclareceu com muita inteligência, certa vez, uma Servidora da Fazenda Estadual, que o Empresário é apenas fiel depositário dos tributos que pagamos, ao comprarmos alguma mercadoria; de modo que é sua obrigação, recolher esses impostos aos Cofre Públicos. Mas, no mais das vezes, o que se vê é o empresário se comportar infielmente, isto é, retendo consigo, ilegalmente, os impostos; e, quando recolhidos corretamente, o fato é afigurado para a sociedade, especialmente para os trabalhadores, como se ele, empresário, estivesse pagando-os do próprio bolso. O problema é que a verdade é tímida, enquanto a mentira anda desavergonhadamente dando-se como verdade, a conquistar as inocências e ingenuidades…

Houve um tempo em que a Esquerda buscava esclarecer todo esse processo, demonstrando às massas trabalhadoras que: ao se vender para o empresário, como “mão de obra”, em troca de um salário (único meio para conquistar a sobrevivência), o Trabalhador produz todas as riquezas e, nesse processo de produção, é o seu trabalho que valoriza o capital, enriquecendo o Empresário; evidenciava, assim, que a sociedade inteira se sustenta e se desenvolve pelo que o Trabalhador produz. A verdade que se mostra, por fim, é que: se todos os empresários desaparecessem e restasse apenas os Trabalhadores, dentre estes surgiriam novos Empresários; mas, se todos os Trabalhadores desaparecessem, e só restasse os Empresários, estes desapareceriam…

João Guató

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