Rosinha e o Rio que Nunca Seca

Rosinha das Canelas Finas era uma dessas figuras que só a Amazônia sabe parir. Pequena, franzina, com pernas tão delgadas que pareciam de sabiá, mas com um espírito que metia respeito até nos bichos da floresta. Diziam que ela “sofria dos nervos”, mas a verdade é que Rosinha tinha um pavio mais curto que o verão amazônico. Bastava um olhar torto ou uma palavra atravessada para ela virar uma tempestade. 

Quando contrariada, Rosinha não virava só uma mulher furiosa; virava uma entidade da selva, uma besta-fera que nem boto cor-de-rosa querendo cruzar. A voz, que em momentos de calmaria era doce como canto de uirapuru, se transformava num trovão que ressoava entre os castanhais e assustava até os macacos bugios. Era faca voando, panela chiando e quem tivesse juízo tratava de sumir de vista antes que a fúria dela explodisse de vez. 

Os vizinhos da colocação já sabiam: se Rosinha estivesse “atacada dos nervos”, era melhor dar meia-volta e procurar abrigo em outro seringal. Até o padre da comunidade, que certa vez tentou dar a ela umas gotas de benzedeira para “acalmar o espírito”, teve que correr de batina levantada quando ela jogou a garrafa de vidro em sua direção. 

Mas, se todo furacão tem seu olho de calmaria, Rosinha tinha o seu: Manelão, o seringueiro mais tranquilo de toda a margem do rio Purus. O caboclo, de fala mansa e sorriso largo, era o único que conseguia domar a tempestade que era Rosinha. Ninguém entendia como, mas bastava ele chegar, com seu jeito sossegado de quem nunca tinha pressa, e Rosinha se aquietava. 

— Ô, Rosinha, tá nervosa de novo, é? — ele dizia, com aquela voz que parecia vinda das profundezas da mata de quem bebeu o daime.

Ela, ainda bufando como onça acuada, respirava fundo, e em questão de minutos, já estava sorrindo, como se nada tivesse acontecido. Era um mistério que nem os mais velhos conseguiam explicar. 

Diziam que Manelão trazia nos olhos a paz da floresta, e que o cheiro do seu suor, misturado ao látex das seringueiras, tinha algum poder mágico. Ele nunca levantava a voz, nunca apressava Rosinha, e, acima de tudo, nunca a contrariava. Entendia que algumas pessoas são como os rios da Amazônia: se você tenta barrar o curso, elas transbordam e levam tudo pela frente. 

— Manelão, tu é santo ou é feiticeiro? — perguntava o compadre Zeca. 

— Nem um, nem outro, meu amigo. Só sei que mulher a gente não contraria. A Rosinha é que nem cobra: se cutucar, ela morde. 

E assim, o amor improvável entre a fera e o sossego seguia firme, enquanto a floresta testemunhava, em silêncio, a dança de Rosinha e Manelão — ela, tempestade pronta a explodir, e ele, calmaria que a fazia desaguar em riso. Dizem que, no fundo, era a própria Amazônia encarnada nos dois: bruta, indomável e, ainda assim, cheia de amor.

Até que um dia, o imprevisto chegou, como chegam as águas que de repente invadem a floresta sem aviso. Manelão, o sossego em forma de gente, adoeceu. Foi coisa rápida, tão rápida quanto o voo do gavião no céu aberto. Uma febre que veio numa noite e não o deixou ver o sol do dia seguinte.

A notícia correu pela mata mais ligeira que o próprio vento. Rosinha das Canelas Finas, a tempestade que não temia nada nem ninguém, se viu pela primeira vez diante de algo que não podia enfrentar com gritos ou panelas voadoras. O sossego dela se foi, e com ele, toda a força que a fazia ser fera.

No velório, a comunidade se reuniu em silêncio, esperando talvez o inevitável espetáculo de fúria e desespero que seria ver Rosinha desmoronar. Mas ela não chorou. Não gritou. Não jogou garrafa nem correu ninguém a facão. Só ficou ali, sentada ao lado do caixão, com as pernas finas cruzadas, como se estivesse esperando algo.

Quando a última pá de terra cobriu Manelão, Rosinha se levantou, caminhou até o barranco do rio e ficou olhando para o horizonte. Alguém se aproximou para confortá-la, mas ela apenas levantou a mão, pedindo silêncio.

Naquele momento, dizem, o vento parou de soprar, e a floresta inteira ficou imóvel, esperando. Então, Rosinha sorriu. Um sorriso largo, tranquilo, que ninguém jamais havia visto antes. Virou-se para a comunidade e disse:

— Manelão não foi embora. Ele virou rio. Agora ele corre em mim.

E, como quem obedece ao fluxo natural das águas, Rosinha se deitou na canoa amarrada à margem, soltou o nó que a prendia e deixou que a correnteza a levasse. Deixou-se levar para onde o rio quisesse, porque, como Manelão ensinou, alguns caminhos não se barram. Eles simplesmente fluem.

Desde então, quem navega pelo Purus jura ouvir, nas noites de lua cheia, um riso distante vindo das margens. Um riso que ecoa pela floresta, doce como o canto do uirapuru, mas firme como o ritmo do rio. É Rosinha, dizem os mais velhos, que agora dança eternamente com seu Manelão, a tempestade e o sossego fundidos para sempre na correnteza do tempo.

João Guató

Pasquim Teológico: sua revista virtual das boas novas com acesso gratuito, de massa e democrático!

Você pode gostar...