A Carta que Iluminou a Escuridão: O Ato de Solidariedade de Ariano Suassuna a Paulo Freire
Em uma era onde o medo se tornava quase palpável e a liberdade parecia um sonho distante, um ato de amizade e lealdade brilharam como faróis em meio à escuridão. A história nos presenteia com uma correspondência que, agora recém-publicada na Revista de Cultura da UFPE, revela uma das mais significativas trocas de apoio entre dois ícones da cultura brasileira: Paulo Freire e Ariano Suassuna.
Nos anos 60, quando o Brasil estava mergulhado em um mar de repressão e censura, Paulo Freire, já um visionário em seu método de alfabetização, encontrava-se exilado no Chile. Seu método revolucionário, que viria a transformar a educação em um marco de inclusão e consciência crítica, precisava de um toque final para alcançar sua plenitude. Foi então que a parceria com Ariano Suassuna, amigo leal e grande defensor da cultura popular, se tornou uma sinfonia de colaboração e solidariedade.
Freire, antes de publicar seu método, confiou em Suassuna para avaliar e enriquecer sua obra. Em um gesto de critério e amizade, Suassuna elogiou a profundidade do método, mas fez uma sugestão: “A parte plástica não está correspondendo à extraordinária qualidade do método.” Sua recomendação de Francisco Brennand, artista conhecido por sua arte popular vibrante, não apenas aprimorou a apresentação do método, mas também simbolizou o poder da colaboração criativa entre amigos.
Mais do que uma simples recomendação artística, essa carta é um testemunho da profunda amizade entre os dois intelectuais. A correspondência revela um momento de vulnerabilidade e esperança, onde a gratidão de Freire por Suassuna se torna um reflexo da lealdade em tempos de crise. Freire menciona com carinho a cena de Suassuna à sua espera no aeroporto do Recife, um abraço que se transformou em um ato de resistência e apoio em um período onde muitos se deixavam consumir pelo medo e pela desconfiança.
Neste trecho, a carta transcende o contexto pessoal e se torna um símbolo da resistência coletiva. Ela evidencia como, em tempos de opressão, alguns escolhem a coragem e a solidariedade em vez da indiferença ou da traição. O gesto de Suassuna não só apoiou Freire, mas também se tornou uma luz para aqueles que lutavam pela justiça e pela educação.
Assim, a publicação desta carta resgata não apenas uma amizade singular, mas também um pedaço vital da nossa história cultural. Ela nos convida a refletir sobre a importância da solidariedade e da lealdade, lembrando-nos de que, mesmo nas horas mais sombrias, a coragem e a amizade podem iluminar o caminho para um futuro mais justo e humano.
A Carta que Iluminou a Escuridão
Querido amigo Ariano,
Escrevo-lhe agora, meu velho amigo, para dizer-lhe de minha sincera gratidão pelo interesse que você teve, desde o primeiro momento, por meu caso. Nunca me esqueço de sua valentia de querer bem, quando, ao chegar ao aeroporto do Recife, vindo de Brasília, num momento em que tudo era penumbra, interrogação, desconfiança, medo, denúncia, fuga, negação; em que os “amigos”, antes e depois que o galo cantasse – não importava – diziam: “Quem é? Não conheço. Jamais vi este homem!” ou, o que era pior: “Conheço este homem, sempre desconfiei de suas intenções malvadas”, lá estava você, fraterno, risonho, confiante, ao lado de Monte, ambos abraçando-me. Abraçando-me, quando cumprimentar-me, simplesmente cumprimentar-me, era uma ameaça a quem o fizesse.
Você, Monte e outros, muitos outros, foram o contrário de alguns. Entre estes nunca me esqueço também, sem rancor e sem ressentimento, ao testemunho de um professor da universidade, que, ao dobrar uma esquina — a do cinema São Luiz — me divisou a uns 10 metros de distância e fez então o mais difícil: andou de lado…
Você, pelo contrário, veio sempre de frente ao meu encontro, a nosso encontro. Encarcerado, você procurava Elza, enquanto os que andavam de lado perderam nosso endereço…
Há poucos dias lhe escrevi, perguntando-lhe, inclusive, como andava minha situação. Volto agora a fazê-lo, depois de ter sido informado pela imprensa, brasileira e chilena, do resultado de meu processo e de ter recebido um telegrama amigo de Monte e Paulo Cavalcanti, confirmando a notícia.
Nesta carta “sencilla” nada mais lhe direi além do meu, do nosso muito obrigado.
Do amigo-sempre,
Paulo Freire.
Santiago, 31.5.68.