A Lei Islâmica e o Comitê de Libertação do Levante: O Sonho de uma Síria Sob a Sharia

No caos da guerra civil síria, onde facções se dividem, alianças se formam e se desmoronam, o Comitê de Libertação do Levante (HTS) surge como um dos grupos mais poderosos e enigmáticos da região. Nascido das cinzas da Al-Nusra, um braço da Al-Qaeda, o HTS se posiciona como uma força jihadista que luta por um Estado islâmico no noroeste da Síria, especialmente na província de Idlib. Com um nome que evoca a ideia de libertação, o grupo se propõe a restaurar uma ordem que, em sua visão, só pode ser alcançada por meio da aplicação rigorosa da sharia, a lei islâmica.

O Que é a Sharia Para o HTS?

Para o HTS, a sharia não é apenas um conjunto de princípios morais, mas um sistema legal completo que deve governar todos os aspectos da vida. Para entender a visão do grupo, é necessário perceber que, para eles, a sharia é a resposta para todos os problemas da sociedade síria. Desde a injustiça política e econômica até a decadência moral, a implementação da sharia seria, para o HTS, a única maneira de restaurar a ordem e a pureza em uma nação dilacerada pela guerra.

Embora a sharia em sua essência seja uma interpretação religiosa do Islã, o HTS a aplica de maneira rígida e punitiva. Seu objetivo é criar uma sociedade onde os princípios religiosos prevaleçam sobre as leis seculares e onde o Islã seja a base de toda a política, economia e vida cotidiana. Para o grupo, a aplicação da sharia é vista como um ato de libertação — a libertação do domínio de governos corruptos, da influência ocidental e da tirania dos regimes que controlam a Síria.

A Aplicação da Sharia em Idlib

Nas regiões sob controle do HTS, a vida cotidiana dos habitantes está profundamente marcada pelas normas impostas pelo grupo. A sharia, sob sua interpretação, regula desde o comportamento público até a interação entre os gêneros. Mulheres são obrigadas a usar véus e roupas que cobrem todo o corpo, e sua mobilidade é restrita, especialmente em áreas públicas. O contato físico entre homens e mulheres que não sejam parentes próximos é severamente restringido, em nome da preservação da moralidade islâmica.

As punições também são parte essencial da aplicação da sharia. Crimes como roubo, adultério e blasfêmia são punidos de maneira severa. O roubo pode resultar em amputações, e aqueles que são acusados de adultério enfrentam punições corporais ou, em casos extremos, a morte. O grupo, de forma semelhante a outros grupos jihadistas, utiliza essas punições para reforçar a disciplina religiosa e moral, embora a aplicação real dessas penas nem sempre siga os preceitos mais clássicos da sharia e, por vezes, seja influenciada por interesses políticos ou militares.

A “Libertação” Imposta

Apesar de se autodenominar um grupo de libertação, o HTS impõe uma visão de sociedade que é, para muitos, extremamente opressiva. O conceito de liberdade que eles defendem não é pluralista ou inclusivo, mas baseado em uma visão unificada e homogênea de uma sociedade regida pela sharia. Para o HTS, a verdadeira liberdade é viver de acordo com as leis de Deus, o que, na prática, significa a imposição de um modo de vida que muitos sírios, inclusive muitos muçulmanos, consideram autoritário e restritivo.

Este paradoxo é visível nas interações do HTS com outras comunidades. Enquanto o grupo se apresenta como um defensor da libertação e da justiça, suas ações frequentemente envolvem a perseguição de dissidentes, a repressão a grupos religiosos minoritários e o controle rígido sobre a população local. Mesmo entre os muçulmanos, aqueles que não seguem a mesma interpretação da sharia do HTS são muitas vezes tratados como inimigos ou traidores da causa islâmica.

O Impacto Sobre a Diversidade Síria

A Síria sempre foi uma terra de diversidade religiosa e cultural, com uma longa história de convivência entre muçulmanos, cristãos, drusos e outras minorias. No entanto, a visão do HTS de um Estado puramente islâmico, governado pela sharia, ameaça destruir essa pluralidade. O grupo não apenas luta contra o regime de Bashar al-Assad, mas também contra as diferentes tradições que coexistem na Síria.

Para os cristãos e outras comunidades não muçulmanas, viver sob a sharia de um grupo como o HTS pode ser uma perspectiva assustadora. Embora o grupo afirme que protegerá as minorias sob seu controle, a prática frequentemente resulta em discriminação, limitações de direitos e, em alguns casos, expulsões forçadas ou perseguições. Em áreas sob o controle do HTS, muitos sírios se sentem aprisionados em uma guerra constante entre diferentes facções religiosas e políticas, sem espaço para a convivência pacífica e a liberdade religiosa.

A Contradição da “Libertação”

O nome de Libertação no título do grupo parece ser um convite à esperança, uma promessa de que o povo sírio será livre das garras da opressão. No entanto, a realidade é bem diferente. A aplicação da sharia por um grupo como o HTS não é uma libertação, mas sim uma forma de subjugação. O que o grupo propõe é um novo tipo de regime, baseado em um modelo religioso autoritário e punitivo, que desconsidera a complexidade da sociedade síria e as diversas formas de vida que nela coexistem.

Para muitos sírios, o regime do HTS não é uma alternativa à guerra e ao sofrimento, mas mais um opressor a ser derrotado. A libertação, nesse caso, parece ser um termo vazio, usado para justificar um controle que não traz liberdade, mas uma visão restritiva e excludente de como a sociedade deve ser.

O Comitê de Libertação do Levante (HTS) pode se autodenominar uma força de libertação, mas sua visão de sharia e de governo é, na verdade, uma forma de opressão. Para aqueles que vivem sob o seu domínio, a promessa de liberdade é substituída pela realidade de um controle rigoroso e implacável sobre cada aspecto da vida. A sharia, na interpretação do HTS, se torna não uma ferramenta de justiça e moralidade, mas uma arma de subjugação, impondo um modelo de vida que exclui a diversidade religiosa e cultural da Síria. Em um país já devastado pela guerra, a última coisa que a Síria precisa é de mais uma imposição de poder que se disfarça de libertação.

João Guató

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