A Melodia Silenciosa: A Vida do Surdo Negro Wendel Mel

Por João Guató e Ozi Miranda

Wendel nasceu numa cidade vibrante, onde as cores saltavam dos telhados e as risadas se espalhavam pelas esquinas. Ele era um menino negro, com a pele cor de ébano e um sorriso capaz de acender qualquer lugar. Mas seu som não vinha da boca, nem do coração pulsante. O som de Wendel vinha de um lugar onde ninguém ouvia: do movimento, do olhar, do toque das mãos. Desde cedo, ele descobriu que os sons mais profundos não são os que saem da garganta, mas os que tocam a alma.

Quando tinha cinco anos, uma tragédia silenciosa aconteceu. Sua mãe estava na cozinha, preparando o almoço, quando uma explosão aconteceu. O fogo era invisível, mas violento, e levou a audição de Wendel. O garoto, que antes corria pela casa com a música dos risos dos outros, agora via o mundo em silêncio. O fogo lhe roubou algo precioso, mas ele não sabia ainda que, em vez de perder algo, havia ganhado o poder de ouvir de uma maneira completamente diferente.

Wendel nunca deixou o silêncio abafá-lo. O pai se preocupava, perguntando se a televisão estava alta demais, e Wendel respondia com um sorriso travesso: “Não escuto nada, pode aumentar mais!” O menino não se deixava esmagar pelo vazio que o mundo lhe impunha. Ele queria aprender, queria ser como os outros, queria dançar ao som do que os outros chamavam de vida.

Ele começou a estudar em escolas para surdos, mas a trajetória não foi fácil. Com a chegada do irmãozinho, sua mãe não conseguiu mais levá-lo ao INES, a escola dos sonhos. Então, Wendel passou por cinco escolas diferentes. Cada uma com seu jeito, seu ritmo. Por um tempo, ele se sentiu perdido, como se não coubesse em lugar algum. Mas nunca desistiu. A vida lhe dava desafios, e Wendel, com a leveza de quem não teme a luta, os enfrentava.

Foi no INES, já mais velho, que ele encontrou seu caminho. Ali, ele não só aprendeu Língua de Sinais, mas aprendeu a dar forma ao que antes era invisível: as palavras, o pensamento, o desejo. E foi nesse momento que ele descobriu algo ainda mais profundo — o corpo. Como dançarino, ele se entregou à liberdade do movimento, à força que vinha da dança. Quando o sapateado entrou em sua vida, a música parecia correr pelas suas veias, sem som, mas com ritmo. Ele aprendeu com Steven Harpe e, mais tarde, com Carlinhos de Jesus, um mestre de dança de salão. Cada passo era uma afirmação de que a vida é movimento, e o corpo, um instrumento de expressão.

E Wendel dançou. Dançou em salas de aula, dançou na rua, dançou no silêncio e na solidão. Ele começou a ensinar dança para outras crianças surdas, no INES, e ali ele se tornou um farol de esperança. Ele dizia: “Não há limitações para quem sonha.” E, ao seu redor, as crianças começaram a entender o que ele queria dizer: o silêncio não é uma barreira, é uma possibilidade. O ritmo pode ser ouvido de muitas maneiras, e o coração de Wendel estava repleto dele.

Mas ele não parou por aí. Como um rio que não se cansa de correr, Wendel também foi à frente. Ele se tornou o primeiro pedagogo surdo e negro do Brasil. Fundou mais de 20 ministérios para surdos em igrejas pelo Brasil, e se tornou o primeiro surdo na equipe médica da Confederação Brasileira de Desportos em Surdos. Era como se o mundo, antes limitado pelas barreiras do som, agora fosse um lugar onde ele poderia construir pontes.

Seu maior ensinamento, no entanto, não estava nos diplomas, nos títulos ou nos reconhecimentos públicos. Estava na sua forma de ser. Ele era um homem que acreditava que todos, independentemente de suas diferenças, podiam dançar, podiam ensinar, podiam viver. Ele nunca se afastou de sua verdade. Continuou a dançar, a ensinar, a acolher os outros com o gesto da mão, com o olhar, com o sorriso. Porque ele sabia que, na vida, é o que se tem dentro do peito que realmente faz a diferença.

Em 2016, Wendel começou a ensinar crianças surdas a dançar no INES, e era lá que ele mais amava estar — no meio de risos e movimentos, de passos dados com os pés e com a alma. Ele dizia a seus alunos que o mundo é grande, mas a dança faz o pequeno se expandir. “Aqui, todos têm espaço para brilhar”, ele repetia. E aqueles que o escutavam, com os olhos ou com os corações, sentiam, mais do que nunca, que os sonhos não têm fronteiras.

Wendel se foi, mas a dança que ele começou nunca parou. Ela segue vibrando no ar, atravessando o tempo, tocando aqueles que ainda acreditam que, não importa o silêncio, a vida sempre encontra uma forma de dançar. Porque Wendel nos ensinou que o maior som é aquele que vem de dentro, e o maior movimento é aquele que nos leva a nos encontrarmos.

E, assim, a história do menino negro e surdo, que dançou pelo mundo sem precisar ouvir, continua a ecoar. Mas, como se sua jornada já não fosse grandiosa o suficiente, Wendel seguiu em frente. Ele sabia que o sonho nunca termina, e o silêncio, mesmo tão presente, nunca é absoluto. Hoje, Wendel é mestre e professor na Universidade Federal de Rondônia (UNIR), no Departamento de Letras Libras, em Porto Velho, onde se dedica a ensinar Língua Brasileira de Sinais e a formar novos educadores e pedagogos surdos. Ele não é apenas um acadêmico, mas um mentor, um verdadeiro guia para aqueles que chegam à universidade em busca de conhecimento e inclusão. Lá, na sala de aula, continua a quebrar barreiras, a construir pontes entre os mundos e a mostrar que, no fundo, o que nos une não é a capacidade de ouvir, mas a de compreender e respeitar as diferenças.

Wendel se foi, mas a dança que ele começou nunca parou. Ela segue vibrando no ar, atravessando o tempo, tocando aqueles que ainda acreditam que, não importa o silêncio, a vida sempre encontra uma forma de dançar. Porque Wendel nos ensinou que o maior som é aquele que vem de dentro, e o maior movimento é aquele que nos leva a nos encontrarmos. A história desse homem que, com sua coragem e seu amor pela vida, fez do silêncio sua maior sinfonia e da dança sua maior mensagem, segue ecoando.

Wendel se encontra com as novas gerações de surdos e ouvintes, na sala de aula e fora dela, onde sua missão parece ter se renovado. Ali, em Porto Velho, não há mais fronteiras entre as palavras e os gestos. A Língua de Sinais se tornou não apenas um meio de comunicação, mas uma ponte que conecta os corações, um elo que une estudantes com diferentes experiências de vida. E Wendel, com sua presença serena e assertiva, é a prova viva de que o verdadeiro aprendizado não se dá apenas em livros e provas, mas no respeito, no afeto e no reconhecimento das potências de cada indivíduo.

Seus alunos, muitos deles surdos, vêm de diferentes partes do estado, enfrentando uma realidade de poucas oportunidades de educação de qualidade, e muitos chegam até a universidade com o coração carregado de inseguranças e dúvidas. Mas, ao atravessar a porta de sua sala de aula, esses jovens descobrem que, ali, o silêncio nunca é um obstáculo, mas uma possibilidade. Wendel tem essa capacidade rara de ensinar com o olhar, com o gesto, e, principalmente, com a paciência. Para ele, a Língua de Sinais não é apenas um conjunto de sinais, mas uma filosofia de vida que desafia a ideia de normalidade e nos obriga a pensar no que realmente importa: a inclusão, o respeito às diferenças e a valorização das diversas formas de ser e de estar no mundo.

Wendel não é um professor convencional. Ele não se limita ao conteúdo técnico das aulas. Ao contrário, ele ensina sobre a vida, sobre os obstáculos, sobre os sonhos que são muitas vezes ofuscados pela sociedade. Ele fala sobre o que é ser negro e surdo em um país que, até hoje, ainda marginaliza essas duas realidades. Fala com propriedade sobre a dor da exclusão, mas também sobre a beleza da resistência e do empoderamento. Ele sabe que ser diferente é um ato de coragem, mas que, ao mesmo tempo, é uma chance de construir um mundo mais justo e mais humano.

Para ele, a educação não deve ser um processo unilateral, mas um diálogo constante. Seus alunos aprendem a partir de seus próprios relatos, suas histórias de vida, e Wendel faz questão de estar presente em cada uma delas. Ele ensina o valor de compartilhar o próprio caminho, de olhar para o outro e ver no outro uma parte de si. Cada dia em sua sala de aula é um convite à descoberta: descobrir a língua, descobrir o outro, descobrir a si mesmo. Ali, o que mais importa não é o que falta, mas o que se pode criar.

Em seu papel de mestre, Wendel não se esquece de que a educação de surdos precisa ser mais do que uma técnica ou uma disciplina acadêmica. Ela precisa ser uma forma de construir um novo olhar sobre a sociedade. E ele, em sua experiência de vida, em sua trajetória que atravessou os maiores desafios, mostra que a verdadeira inclusão é feita não apenas de ajustes, mas de transformações profundas, de uma reconfiguração do próprio olhar sobre o outro.

A universidade de Rondônia se orgulha de tê-lo em seus quadros, mas, mais do que isso, ele se orgulha de poder formar futuros educadores que vão perpetuar o que ele sempre acreditou: que não há limitações quando se trata de sonhar, e que o caminho do aprendizado é sempre mais rico quando trilhado em conjunto. Ele já formou centenas de profissionais surdos, muitos dos quais agora também ensinam e formam novos estudantes, perpetuando o legado de Wendel. Em cada um deles, a sua marca permanece.

E, como se a sua história de superação e dedicação não fosse impressionante o suficiente, Wendel ainda encontrou tempo para, com sua experiência e sua paixão, inspirar mudanças fora da sala de aula. Ele participou ativamente de movimentos sociais, ajudando a fortalecer a rede de apoio aos surdos e a lutar por direitos fundamentais, como o acesso à educação e à saúde. Ele se tornou referência para aqueles que querem fazer do mundo um lugar mais inclusivo, mais humano. Ele fundou grupos de apoio e instituições, onde, com seu trabalho incansável, conquistou espaços e visibilidade para a comunidade surda da região Norte.

Hoje, Wendel continua a ser um homem inquieto, sempre em movimento. Seu nome é sinônimo de luta, de coragem, de amor à vida e à educação. Ele segue dançando sua própria dança, com os pés firmes no chão e a alma leve, como quem sabe que o verdadeiro ritmo da vida é aquele que nos permite transformar a dor em melodia e a exclusão em oportunidade.

Enquanto a comunidade acadêmica de Porto Velho o reverencia como mestre, ele segue por um caminho onde o mais importante não é aplaudir o talento de um, mas reconhecer a força e o brilho de cada um, mesmo naquelas trajetórias que, inicialmente, pareciam silenciosas.

Porque Wendel, o menino negro e surdo, é, na verdade, o grande maestro de uma orquestra de sonhos. E, como ele sempre dizia, a música pode não ser ouvida, mas é sentida em cada movimento, em cada gesto. No fundo, todos nós somos dançarinos dessa sinfonia silenciosa e transformadora chamada vida.

E, assim, a história de Wendel não tem fim. Ela se renova a cada dia, a cada aula, a cada aluno que se encontra, pela primeira vez, com o seu próprio caminho.

João Guató

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