A Nossa razão Maior de Escritores
Por Marinaldo Custódio
De tempos em tempos, movido por razões pessoais ou mais amplas, surge alguém para declarar sua paixão à literatura. E uma coisa mais do que certa é que declarações de amor sempre nos impressionam. E muito mais impressionados ainda ficamos quando o objeto dessa paixão nem é a literatura como um todo, mas um livro ou até uma pequena parte dele: um
poema, conto ou crônica.
Fiquemos aqui, entretanto, apenas com o caso do livro.
Nesse caso, um dos grandes ímãs de declarações apaixonadas, ao longo dos tempos, é o ‘Dom Quixote de La Mancha’, de Miguel de Cervantes, que atraiu, dentre outros, o devotamento de um autor do porte de William Faulkner: “Leio o ‘Quixote’ todos os anos como outros leem a
Bíblia”.
E veja a ‘coincidência’, que por certo nem é tão coincidência assim: o link que ele faz do romance com as Sagradas Escrituras. O sagrado e o profano “num abraço astral”, como diria Raul Seixas. O ato de escrever testemunhando, de modo envolvente, feitos de gentes, seja lá
de antes do ano 1 da Era Cristã, seja do século XVI, do século XX ou dos dias de hoje.
Já mais perto de nós, lembro do colega de universidade João Mutzenberg quando ele nos contou que na infância tirava proveito de um dos ofícios do pai (jornaleiro nas horas vagas) devorando todo o conteúdo de jornais, revistas e livros que chegavam à sua casa. E, daí, veio a paixão pelos escritos de Carlos Nejar – paixão tamanha que o levou a copiar (antes que
chegasse às mãos do feliz destinatário) um livro inteiro do escritor gaúcho. Revi, então, com os olhos da mente e da emoção, um menino imerso na noite do interior catarinense alheio a tudo ao redor, mas embrenhado, muito por dentro da poesia de Nejar.
Recentemente, e justificando o título deste texto, numa palestra em fevereiro de 2019, na Semana Pedagógica da Rede Municipal de Ensino de São José dos Quatro Marcos, um evento organizado pelo prefeito Ronaldo Floreano dos Santos e pela secretária de Educação, Milts de Souza Ladeia, foi a minha vez de também experimentar o gostinho dessa singular distinção, a de ser lido “na íntegra”. Foi quando a professora de Língua Portuguesa Luciana Siani – a quem, como a imensa maioria ali, fiquei conhecendo naquele dia – confidenciou que havia trabalhado, com os alunos do 9º ano, as 22 crônicas do meu primeiro livro, ‘Viagens inventadas: crônicas e quase contos’, ou seja, ela e seus alunos leram e interpretaram o livro inteiro!
O evento daquele dia se ocupou, em parte, do lançamento do meu novo livro, ‘Vestida de preto & outras crônicas’, fechando com a distribuição de um exemplar a cada um dos participantes.
Ainda no primeiro livro, na crônica “Apenas um leitor” que dediquei à voraz leitora Evelyn, coloquei como epígrafe uma fala de Isaac Bashevis Singer: “Como outros escritores, alimento a ilusão de que existe pelo menos um leitor que acompanha tudo que escrevo”. E se coloquei ali a epígrafe é porque – como é óbvio! – também alimento essa doce ilusão.
À Evelyn, à Luciana Siani e a outros leitores assim apaixonados, digo hoje que nossa razão de viver, a nossa razão maior de escritores reside nisto mesmo: em sermos apreciados, talvez compreendidos, mas, de qualquer modo, lidos integralmente. Isso, com efeito, é capaz de nos
justificar toda a existência, ainda que signifique uma experiência fugaz, singular e mínima. Uma experiência isolada, sim. Mas, tal qual um farol numa ilha, capaz de redirecionar o rumo
dos barcos.
Marinaldo Custódio é escritor. Publicou ‘Viagens inventadas: crônicas e quase contos’ (2010) e ‘Vestida de preto & outras crônicas’ (2018), ambos pela editora Entrelinhas. E-mail:
mcmarinaldo@hotmail.com