Canudos: A Epopeia dos Sertões

Na vastidão da seca árida do sertão baiano, onde o sol queima implacável e o tempo parece eternizado na poeira que tudo cobre, ecoam os ecos de uma guerra que marcou para sempre a história do Brasil. É neste cenário impiedoso que se desenrola a saga de Antônio Conselheiro e sua comunidade messiânica de Canudos, um reduto de resistência que desafiou não apenas as forças armadas, mas também as estruturas políticas e sociais de uma nação em formação.

Neste último final de semana, revisitei as páginas amareladas do Diário de uma Expedição, obra seminal de Euclides da Cunha que serve de matéria-prima para seu magnum opus, Os Sertões. Transportado pelas palavras vívidas e pelos relatos detalhados, mergulhei nas lembranças de um período conturbado da história brasileira, quando em 1897 o jovem repórter Euclides foi enviado pelo jornal O Estado de S. Paulo para cobrir os últimos suspiros da Campanha de Canudos.

Euclides, um observador aguçado e cronista meticuloso, testemunhou de perto a tragédia que se desenrolava nas terras áridas e esquecidas do interior baiano. Os relatos de batalhas sangrentas entre o exército republicano e os sertanejos fiéis a Antônio Conselheiro ganharam vida nas páginas do seu diário. Cada linha era um retrato da brutalidade da guerra, mas também da resiliência e da fé que moviam aquele povo.

No calor sufocante daquelas terras áridas, onde a poeira se misturava ao suor dos soldados e dos sertanejos, emergiu um embate que transcendeu as fronteiras físicas. Assisti ainda no ultimo sábado e domingo dois filmes que tentaram capturar a magnitude e a complexidade desse conflito: Guerra de Canudos de Sérgio Rezende, que trouxe à tela as tragédias e os dilemas morais enfrentados pelas tropas republicanas, e Antônio Conselheiro: O Taumaturgo, uma obra que não só ressuscitou o mito de Antônio Conselheiro, mas também explorou as nuances do sagrado e do profano que permearam aquele episódio histórico.

Enquanto revisitava essas obras cinematográficas, percebi como a narrativa de Canudos continua a ressoar nos dias de hoje. A dualidade entre a verdade histórica e as narrativas distorcidas, um tema tão presente nos dias atuais com o fenômeno das fake news, era evidente nas representações do Cel. Moreira Cezar e de Antônio Conselheiro. A verdade, como Euclides da Cunha tão diligentemente procurou registrar, é a pedra angular sobre a qual o jornalismo e a história devem se fundamentar.

Assim, enquanto releio as páginas gastas do diário de Euclides da Cunha e reflito sobre os filmes que tentaram capturar a essência de Canudos, sinto-me transportado não apenas ao sertão baiano do século XIX, mas também a um momento crucial da nossa identidade nacional. Em cada palavra, em cada cena, ressoa o eco de uma história que não pode ser esquecida, uma história de luta, de fé e de resistência que moldou os destinos de tantos brasileiros.


Canudos e a Maldição da Desinformação

No final do século XIX, o sertão baiano se tornou palco de um dos confrontos mais sangrentos da história brasileira: a Guerra de Canudos. À frente do arraial estava Antônio Vicente Mendes Maciel, o místico e carismático líder conhecido como Antônio Conselheiro. No entanto, o desfecho trágico da guerra não foi apenas uma consequência dos conflitos armados, mas também das armadilhas da desinformação e da paranoia dos militares brasileiros que até hoje mudou!

Canudos era uma comunidade de retirantes, marcada pela miséria, que encontrou em Conselheiro uma figura messiânica. Seus seguidores, os “conselheiristas”, acreditavam em um mundo mais justo, fora das garras dos coronéis e distante do jugo de uma república que lhes parecia indiferente. No entanto, para as autoridades da época, esse reduto de fé era um ninho de insurreição.

A paranoia tomou a forma de informações distorcidas que rapidamente se converteram em verdades absolutas. A imprensa tradicional, cúmplice ou vítima de sua própria credulidade, iniciou uma campanha feroz contra Canudos e seu líder. Eram tempos em que a fake news florescia com uma rapidez assustadora. Rumores despontavam como tempestades no sertão, semeando o pânico e a irracionalidade nas mentes dos governantes e militares.

Os relatos exagerados de que Conselheiro pretendia recriar a monarquia, ou mesmo conduzir uma revolução contra a República recém-instalada, ganharam força. Essas distorções, ora intencionais, ora fruto da ignorância, pavimentaram o caminho para o desastre. Por meio das páginas dos periódicos, os terrores de uma conspiração monarquista imaginária incutiam-se na opinião pública e no governo. Canudos se tornava, na ótica deturpada dos urbanos, um antro perigoso de fanatismo.

Essa campanha de desinformação motivou o envio de expedições militares, cada uma mais violenta que a anterior, num ciclo de violência que culminou na destruição completa do arraial. Os militares, movidos por uma mistura de mal-entendidos e ordens diretas baseadas em notícias falsas, acreditaram estar enfrentando um exército colossal e bem-estruturado. O que encontraram, no entanto, foi um povo desesperado e determinado, disposto a lutar até o fim por sua sobrevivência.

As primeiras tentativas de subjugação provaram-se desastrosas para os militares. A falta de conhecimento do terreno, somada à bravura dos sertanejos e à subestimação do inimigo, resultou em derrotas humilhantes para tropas teoricamente superiores. Cada revés alimentava ainda mais as chamas da fake news, fortificando a narrativa de um inimigo implacável e invencível.

Finalmente, em outubro de 1897, Canudos sucumbiu. O arraial foi arrasado, seus habitantes exterminados, e Antônio Conselheiro, quase um santo trágico, tombou morto. A guerra havia sido vencida, mas ao custo de milhares de vidas e a perpetuação de uma mentira mortal. Quando as autoridades finalmente penetraram no coração do vilarejo, perceberam que o “perigo” anunciado não passava de um engano colossal.

A história de Canudos é um sombrio testemunho do poder corrosivo da desinformação. Num tempo em que as fake news parecem ser uma invenção moderna, Canudos nos relembra que a manipulação da verdade não conhece limites temporais. A lenda negra forjada contra Antônio Conselheiro e seus seguidores mostra que, em sua busca incansável por controle e poder, os equívocos dos fortes podem selar o destino dos oprimidos.

Hoje, Canudos jaz em ruínas, mas sua memória permanece como um eterno alerta. O espírito resistente do sertanejo, a tragédia humana e as lições amargas da guerra de desinformação ecoam pelos ventos áridos do sertão, lembrando a todos que a verdade, embora frágil, é a única arma contra a escuridão da ignorância.


Os Militares e as Teorias da Conspiração

Desde os primórdios da República no Brasil, os militares têm desempenhado um papel fundamental na construção e na manutenção das instituições do país. Contudo, ao longo dos anos, também têm sido protagonistas de teorias da conspiração que distorcem eventos históricos e obscurecem a verdade. Este comportamento é não apenas irresponsável, mas também perigoso para a coesão nacional e para o entendimento correto de nossa história.

Uma das teorias da conspiração mais persistentes envolve a própria instauração da República no Brasil, em 1889. Ao invés de reconhecer o movimento republicano como uma resposta legítima às injustiças e à corrupção do Império, alguns setores militares insistem em propagar a ideia de que houve um golpe para derrubar a monarquia. Essa narrativa distorce os fatos históricos e ignora o clamor popular por mudanças democráticas e progressistas.

Além disso, os militares frequentemente alimentam teorias infundadas sobre eventos contemporâneos, muitas vezes visando desestabilizar governos democraticamente eleitos ou para justificar intervenções indevidas na política nacional. A disseminação de informações falsas e a criação de narrativas conspiratórias minam a confiança pública nas instituições democráticas e prejudicam o debate público saudável.

É crucial que os militares, como instituição de Estado, se comprometam com a verdade histórica e com a transparência. A responsabilidade de preservar a integridade da história do Brasil não pode ser subestimada, especialmente em um momento em que o país enfrenta desafios significativos de desinformação e polarização política.

Além disso, a promoção de teorias da conspiração pelo próprio establishment militar pode gerar um ciclo perigoso de desconfiança e divisão entre a sociedade brasileira. Em vez de contribuir para o fortalecimento da democracia e da estabilidade institucional, tais práticas corroem os alicerces sobre os quais nossa nação deveria se sustentar.

Portanto, é imperativo que os líderes militares e os defensores da verdade histórica no Brasil se levantem contra a propagação irresponsável de teorias da conspiração. Devemos defender uma narrativa baseada em evidências e em fatos verificáveis, promovendo assim um entendimento mais claro e preciso de nossa trajetória como nação.

A história do Brasil é rica e complexa, marcada por lutas, conquistas e desafios. Negar ou distorcer os eventos que moldaram nossa identidade coletiva é um desserviço não apenas à memória daqueles que nos precederam, mas também às gerações futuras que merecem herdar uma narrativa histórica honesta e íntegra. Portanto, é hora de os militares abandonarem as teorias da conspiração e se comprometerem com a verdadeira missão de proteger e servir ao povo brasileiro.


João Guató

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