Um Menino Travesso
O menino, cujo nome ninguém mais lembrava – talvez fosse Piquitito, talvez fosse Kid, mas poderia muito bem ser o Maneco –, se destacava não só pelas traquinagens, mas pela lábia afiada e pelo faro para negócios, ainda que duvidosos. Ele atuava como corredor de imóveis, vendendo latifúndios a migrantes do Rio Grande do Sul e do Japão, atraídos pela promessa de terras férteis e baratas para o cultivo de soja.
Numa tarde abafada de dezembro, o Hotel Kaiaby, que ficava ao lado da sede do Incra, foi palco de mais uma de suas artimanhas. Lá, hospedou-se um grupo de japoneses, interessados em adquirir uma grande área para cultivo. Os olhos dos japoneses, brilhando de esperança, logo chamaram a atenção do menino travesso, que viu ali uma oportunidade dourada.
— Kon’nichiwa, senhores! — cumprimentou ele, com um sotaque improvisado, mas convincente. — Tenho exatamente o que vocês precisam. Terras com muita água, fertilidade sem igual. Se me acompanham, posso mostrar-lhes o Vale do Rio Arinos.
Os japoneses, liderados por um senhor de olhar penetrante e chapéu de palha, chamado Sr. Yamamoto, seguiram o menino travesso, que os conduziu por caminhos de terra batida até uma ponte que atravessava o majestoso rio Arinos. A água límpida e reluzente, o murmúrio suave do rio e a sombra acolhedora das árvores ciliares compunham um cenário idílico.
— Sugoi! — exclamou um dos japoneses, maravilhado.
— Este rio, meus amigos, é o coração das nossas terras. — O menino fez um gesto amplo com os braços. — Um patrimônio inestimável da Imobiliária Tabajara.
Do outro lado do rádio amador pirata, escondido numa casinha nos fundos do Incra, o comparsa do menino travesso, conhecido apenas como Bosquinho, ouvia a conversa e, num tom solene, confirmava a autenticidade dos documentos inexistentes.
— Positivo, garotinho. Tudo certinho com os papéis. — Bosquinho replicava, sua voz ecoando pelas ondas do rádio amador que fazia uma barulho de rádio com baixa frequência, apresentando muito ruído e chiados. Mas tudo era uma armação, realidade Bosquinho estava nos fundos da imobiliária tabajara.
Encantados com a beleza natural e a eloquência do menino travesso, os japoneses decidiram que ali era o lugar ideal para investir. Sem suspeitar de nada, Sr. Yamamoto e seu grupo desembolsaram alguns milhões de dólares pela “joia da coroa” que lhes fora mostrada.
— Arigatou gozaimasu, jovem! — agradeceu Sr. Yamamoto, apertando a mão do menino travesso com vigor.
Com os bolsos cheios de dólares e um sorriso maroto no rosto, o menino travesso partiu para umas longas férias, deixando Diamantino e suas memórias para trás. Ele desapareceu do mapa por dez anos, vivendo em luxo, poder e glória, enquanto as terras vendidas permaneciam apenas como uma lembrança nebulosa para os compradores japoneses.
E assim, em Diamantino ficou registrado a narrativa do menino travesso que vendeu as terras do Vale do rio Arinos aos japoneses.
Essa crônica revela a esperteza e aventuras, um retrato vívido de um tempo onde o sonho e a trapaça caminhavam de mãos dadas pelas vastas terras de Mato Grosso, que era vendidas sem nenhum critério.
A Luta pela Terra e os Conflitos Agrários
Nos anos 70, o estado do Mato Grosso foi palco de intensos conflitos agrários, marcados por uma grande migração de agricultores em busca de novas oportunidades e terras férteis. Essa migração foi impulsionada tanto por políticas governamentais quanto pelo aumento do preço da terra no Sul do Brasil, o que levou muitos gaúchos e paranaenses a se aventurarem na fronteira agrícola do Centro-Oeste.
A Chegada da Soja
A expansão da soja no Brasil, especialmente no Mato Grosso, transformou radicalmente a paisagem agrária. Com incentivos do governo militar, a produção de soja saltou de 1,5 milhão de toneladas em 1970 para cerca de 13,7 milhões de toneladas em 1980. Esse crescimento trouxe consigo um aumento na demanda por terras, provocando uma valorização dos terrenos e acirrando os conflitos pela posse da terra.
Conflitos com Posseiros
A chegada de grandes produtores e empresas agrícolas criou uma tensão significativa com os posseiros e pequenos agricultores que já habitavam a região. Estes últimos, muitas vezes sem títulos de posse formalizados, se viam em desvantagem diante da pressão dos novos colonos e das grandes corporações. A falta de uma regulamentação clara sobre a posse de terras exacerbava esses conflitos, frequentemente resultando em confrontos violentos e desalojamentos forçados.
O Papel do Incra
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) desempenhou um papel central na tentativa de regularizar a situação fundiária no Mato Grosso. Criado para mediar conflitos e distribuir terras de forma mais equitativa, o Incra enfrentou desafios imensos devido à complexidade e à magnitude dos problemas de posse de terra. Embora tenham sido feitas tentativas de regularizar a propriedade das terras e fornecer títulos de posse, muitos processos foram marcados por irregularidades e corrupção.
A Situação dos Indígenas
Outro aspecto crítico dos conflitos agrários no Mato Grosso envolvia as terras indígenas e das comunidades tradicionais. A expansão agrícola muitas vezes desrespeitava os territórios dessas populações, levando a deslocamentos forçados e à destruição de modos de vida ancestrais. A luta pelo reconhecimento e pela demarcação de terras indígenas se intensificou, gerando conflitos que persistem até hoje.
A Criação de Varas Especializadas
Diante da escalada de violência e da complexidade dos conflitos agrários, o Tribunal de Justiça de Mato Grosso criou varas especializadas para tratar dessas questões. A iniciativa visava promover uma maior agilidade no trâmite dos processos e uma maior segurança jurídica nas decisões, buscando, assim, minimizar os conflitos e promover a paz social no campo
A década de 70 no Mato Grosso foi um período de profundas transformações e conflitos no campo. A chegada da soja e a migração de agricultores do Sul do Brasil trouxeram desenvolvimento econômico, mas também provocaram tensões sociais e disputas violentas pela posse da terra. A luta pela regularização fundiária e pela justiça agrária continua sendo um desafio, refletindo a complexidade das relações de terra no Brasil.
.