Duas Caravanas e um Menino

Professor Dr. Elismar Bezerra Arruda

Quase outono de 1979, vestida de branco e azul, uma multidão de jovens e adolescentes tomava a Praça dos Três Poderes, em Brasília; era o dia 15 de março daquele ano. O general Figueiredo tomava posse na Presidência da República, sem ter recebido um único voto do Povo Brasileiro. A República havia sido subtraída pelos militares e seus parceiros civis, notadamente grandes empresários, por meio de um Golpe de Estado. Toda a América do Sul vivia o tormento das ditaduras: Argentina, Uruguai, Chile, Paraguai, Bolívia, Peru, viviam as consequências nefastas de respectivos Golpes de Estado, todos apoiados e sustentados pelos Estados Unidos.

Figueiredo seria o último dos militares a ocupar a Presidência da República, representando a Ditadura instituída em abril de 1964; que, em 1979, vivia os seus estertores. Figueiredo assumia com a “missão” de, ao fim do mandato, “passar” o poder aos civis, mas, não para quaisquer civis. A realidade nacional estava marcada pela inflação alta (de 77,21% naquele ano), alto desemprego, salários baixos, uma das maiores dívida externa do mundo e, assim, pela insatisfação da sociedade com os milicos.

A grande tarefa confiada a Figueiredo – de encaminhar a saída dos militares do governo, mediante uma tal “abertura lenta, gradual e segura” – significava criar garantias e condições para que, fora do governo, nenhum militar golpista sofresse punições; como se viu ocorrer com ditadores de outros países. Isto significava impedir a Esquerda e/ou “Comunistas”, de serem seus sucessores; o que pressupunha, entregar a Presidência, o Governo, a grupos políticos civis de sua confiança, alinhados à Ditadura. Que foi, o que se verificou: primeiro, com a derrota da Emenda das “Diretas–Já!” no Congresso Nacional, a mando dos militares; depois, com a eleição de Tancredo no famigerado Colégio Eleitoral; por fim, com a morte de Tancredo, que ensejou Sarney assumir a Presidência da República em 1985…

Mas, aquela multidão de adolescentes e jovens, constituía o que os militares denominaram de CIN – Caravana de Integração Nacional; que, não era outra coisa, senão, a tentativa de maquiarem a posse do seu último ditador, com a presença popular, civil, naquele evento. Para isto, encarregaram as Escolas Públicas de selecionarem em todo o País, dentre os seus alunos da série mais elevada oferecida no respectivo município, o que tivesse as melhores notas; esse representaria o seu município na Posse do Figueiredo, em Brasília. Ditadores gostam de povo, desde que distante do governo, sem direito ao voto livre, e proibido de opinar sobre as coisas do Estado.

Naquele tempo, o Brasil tinha mais Sertão, que Cidade; mais rádio, que televisão. Telefone era coisa de cidade grande e de gente rica. Comunicação à distância era feita através de radioamador, telegrama e, especialmente, por carta!

Lembro-me que recebi a notícia, quando meu Pai e eu chegávamos “do mato”, isto é, de uma “roça de toco”, que cultivávamos seguindo o ciclo do Araguaia: as águas baixavam, limpava-se e plantava, para colher tudo, antes de tudo ser “alagado” pelo rio. Terra boa, de muito húmus, trazido pelas águas: dava de tudo. (Essa terra, quase 50 anos depois, está sendo requerida, na Justiça, por um grande proprietário, que se diz dono delas, sem nunca ter cultivado ali, um único pé de cebola branca; diz-se que ele tem o “título”, nós, não – senão, o da presença ativa, produtiva: como dezenas de outros!) Mas, como dizia: chegávamos da roça, e minha Mãe veio nos dar a notícia de que eu, aluno da 8ª série, havia sido escolhido para representar a nossa pequena e belíssima Luciara, em Brasília.

Não me lembro da sensação, diante da notícia; talvez, ou certamente, mais surpresa e curiosidade, que alegria. É que nem sabíamos daquela seleção, menos ainda da tal Caravana; e naquele então, a vida sertaneja em suas simplicidades e acanhamentos tinha muita timidez diante das coisas da cidade, desde o falar. Comprou-se roupa, sapato, perfume e mala. A prefeitura, como era a obrigação determinada por Brasília, deu um dinheiro para a viagem, além de designar um servidor seu, Valter Milhomem, compadre de meus pais, para me acompanhar até Cuiabá.

Brasília não tinha completado nem 20 anos, desde a sua inauguração. O ônibus da Xavante sacolejou-nos por quase dois dias nas estradas lamacentas, sem asfalto, daquele extremo-leste do Araguaia, até Cuiabá. Desembarcamos na antiga rodoviária cuiabana, já desaparecida, ali na Miranda Reis; que nossa artista-maior, Dalva de Barros, imortalizou-a numa bela obra – como são as suas obras todas. Um militar de alta patente me recebeu e levou-me para o Hotel Fazenda Mato Grosso, onde estavam os representantes dos demais municípios mato-grossenses; lá eu vi, pela primeira vez, uma televisão funcionando: ficou na memória as imagens de Benito de Paula cantando…

No dia seguinte, fomos levados à Residência Oficial dos governadores, na Barão de Melgaço, para sermos recepcionados pelo último Governador de Mato Grosso indicado pelos militares, Frederico Campos; que, sentado ao lado da esposa, com trejeitos reais, davam as mãos à cada um de nós, da extensa fila. (Dez anos depois, eu, presidente do Sintep-MT e Frederico Campos, Prefeito eleito de Cuiabá, defrontávamo-nos em mesas de negociações, com os Educadores em Greve, nas dependências do Palácio Alencastro) Em seguida, embarcamos em um confortável ônibus para Brasília: nós, estudantes, e uns dois ou três militares responsáveis pelo grupo; viagem longa, violão, cantorias, cada um se apresentando, falando do seu lugar…

Em Brasília, ficamos hospedados em um quartel do Exército. Dali fomos levados para conhecer diversos pontos turísticos da Capital Federal; um, especialmente, icônico: a UNB, a Universidade do grande Darcy Ribeiro. Foi quando tive a minha primeira experiência de ver Estudante em Luta, literalmente: no amplo refeitório, lotado de Estudantes, estendiam faixas e cartazes contra o regime militar (“Figueiredo prefere cheiro de cavalos, que Gente!”), palavras-de-ordem gritadas. Militares nervosos, reprimindo, tirando faixas, rasgando cartazes, prendendo Estudantes; a gente olhando tudo com muito interesse, sem entender bem. Nossos coordenadores militares desesperados, ordenando que saíssemos, que fôssemos para o ônibus; e a gente querendo ver mais. Saímos, mas, torcendo pelos estudantes – porque a Luta do Povo é contagiante!

No Ato da Posse vi de perto, o Mário Andreazza, Delfin Neto, Passarinho, Figueiredo e Aureliano Chaves, outros que não sabia o nome, além de militares de todas as Armas, em roupas de gala – pra impressionar. Uns conhecidos que moravam em Brasília, viram-me na TV, porque tudo estava sendo transmitido para todo o País. Minha Mãe guardou fotos daquele tempo, não as tenho. Havia uma agenda com o nome de vários estudantes, conhecidos na Caravana: daqui, e de outros estados; essa não existe mais, mas lembro dos representantes de Pedra Preta, de Barra do Bugres, de Poxoréo…

Os militares, que nos levaram à Brasília para dar à Posse do Figueiredo uma afiguração democrático-popular, fizeram-me conhecer outro Brasil: conflagrado! Eu era estudante e entrar numa Universidade, naquele tempo, era sonho quase lunático de um interiorano do Brasil profundo; então, como não admirar quem estava ali, na UNB, como estudante? Saí de Brasília querendo estar do lado dos que vi sendo reprimidos. Assim, pouco mais de 20 anos, depois, como uma das lideranças do Movimento Sindical de Mato Grosso, convidado por Lula, embarquei em outra Caravana: a Caravana da Cidadania! Mas, essa é outra história, para outra conversa…

João Guató

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