Entre a Autonomia e a Precarização
Em um país marcado por desigualdades e por uma economia em constante reinvenção, o empreendedorismo surge como uma promessa de liberdade, flexibilidade e autonomia. Renato Meirelles, sociólogo e presidente do Instituto Locomotiva, afirma que o universo empreendedor no Brasil não pode ser entendido sem levar em conta as novas tecnologias e as plataformas digitais que têm moldado o mercado de trabalho. Mais de 11 milhões de brasileiros já dependem dessas plataformas para garantir sua renda, mas, ao contrário do que se pode imaginar, o empreendedorismo digital não é sinônimo de liberdade absoluta. Ele é, em muitos casos, uma armadilha disfarçada de oportunidade.
O exemplo dos motoboys é revelador. Nicolas Santos, um motoboy de Juiz de Fora, representa o retrato de uma classe que experimenta uma realidade dual: a de quem escolhe a flexibilidade de trabalhar por meio de aplicativos, mas se vê, ao mesmo tempo, submisso a um controle rígido, que limita suas decisões e condições de trabalho. Santos começou sua trajetória com a Uber, mas, movido pela pandemia, migrou para o iFood, onde passou a sentir na pele as transformações que o mercado digital impõe. “Nossa categoria tem muita resiliência e força”, afirma, mas logo acrescenta: “Nos últimos dois anos, esse controle aumentou de forma alarmante. A autonomia desapareceu. Não posso mais definir o preço do meu trabalho, a subordinação é escancarada”.
Este paradoxo entre liberdade e controle é uma característica central do novo modelo de trabalho no Brasil. Para muitos, a renda via aplicativos é uma válvula de escape diante de um mercado de trabalho formal que, com a Reforma Trabalhista de 2017, passou a oferecer menos segurança, menos direitos e menos estabilidade. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que já foi a âncora do trabalhador brasileiro, não parece mais ser a âncora desejada por muitos. O que muitos não consideram, no entanto, é que o empreendedorismo digital não é, em sua maioria, uma escolha que traga uma ascensão econômica garantida, mas uma adaptação às novas condições de vida que, em muitos casos, se mostram tão precárias quanto os empregos tradicionais.
Meirelles, ao comentar sobre a mudança de percepção das pessoas em relação à CLT, destaca uma verdade incômoda: “As pessoas enxergam que têm menos acesso aos direitos, menos segurança e estabilidade, menos possibilidade de planejamento de futuro a partir da aposentadoria”. A opção pelo empreendedorismo digital, portanto, é uma consequência de um sistema que já não oferece garantias aos trabalhadores, especialmente os mais vulneráveis. Porém, ao adotar os modelos das plataformas digitais, muitos desses trabalhadores não ganham em liberdade ou dignidade, mas em precarização.
Entre os exemplos citados por Meirelles, destacam-se os casos de boleiras e artesãos que utilizam plataformas como iFood e Mercado Livre para expandir seus negócios. Embora essas plataformas permitam que muitos se tornem empreendedores de si mesmos, a realidade é que esses “empreendedores” também estão sujeitos a um regime de trabalho que, em muitos casos, explora suas atividades de forma similar aos antigos modelos formais de trabalho. A promessa de autonomia cai por terra diante do controle absoluto que essas plataformas exercem sobre o trabalho.
A questão que Nicolas Santos levanta é crucial: se o Supremo Tribunal Federal decidir que os motoboys não são trabalhadores, mas parceiros das plataformas, perderão um dos maiores instrumentos de proteção: a Justiça do Trabalho. A ambiguidade do status desses trabalhadores, que são ao mesmo tempo autônomos e subordinados, é um reflexo de um sistema em que os direitos dos trabalhadores se tornam difusos e invisíveis.
O empreendedorismo no Brasil, portanto, não é um modelo único, mas um mosaico de realidades. A verdade é que, por trás do brilho da tecnologia e da promessa de liberdade, muitos trabalhadores enfrentam a dura realidade de um sistema que, na prática, os priva de sua autonomia. A “liberdade” que o digital oferece muitas vezes se transforma em um novo tipo de cinto de ferro, onde o trabalhador é livre para escolher entre várias formas de exploração.
Para que o empreendedorismo no Brasil seja realmente uma opção viável e digna, será necessário repensar as condições de trabalho nas plataformas digitais e garantir que, ao buscar alternativas à CLT, os trabalhadores não se vejam ainda mais vulneráveis. O futuro do trabalho no Brasil não pode ser definido apenas pela velocidade das plataformas, mas pela proteção que elas oferecem aos que nelas dependem para sobreviver. O Brasil precisa de um novo modelo, que combine flexibilidade com justiça, e não que seja, como muitos temem, apenas mais um reflexo da precarização que assola a classe trabalhadora.