Mágicos Céus do Araguaia e Repugnância à Ditadura

Professor Dr. Elismar Bezerra Arruda

Os céus do Centro-Oeste são singulares. Mas, o Céu do Araguaia é mais singular: não há outro, que se conheça, que o confronte em beleza e mistérios de poesia e canto. É assim, mais no verão – quando não chove e seu tempo se faz de confluências de dias de vento geral, que encrespa o Rio e faz banzeiro que embala canoas e sonhos, e de noites de friozinho de praias e águas mornas, para acalentar peixes…

Nas terras do Araguaia, por muito tempo, gentes e bichos e aves viveram sem as usuras de negócios egoísticos, em convívios de solidariedade bíblica: alimentavam-se mutuamente, de cuidados e comida; não havia destruição de sádicos e masoquistas, ávidos por riqueza de dinheiro e poder, deletérios. Porque houve um tempo de pura poesia, de poesia além de poetas de livros e salões de saraus, quando cardumes de quilômetros rompiam varjões alagados e corredeiras, para se refestelarem em gozos de procriação de mais peixes e gente. Eu vi!

Boiadas de bois e vacas e bezerros de raças diversas, multicores – gerados em cópulas sob o sol do sertão, sem o pecado da inseminação que prescinde do gozo para uniformizar a genética; atravessavam a rua principal dos povoados de poucas ruas, guiados por um boiadeiro orgulhoso, de berrante nas costas e sem pressa de caminhões; no ritmo malemolente de um cavalo ou mula, que levavam o peso como quem cumpre uma sina sem esperança de mudar – senão, o de além-perto descansar comendo, sob sombra fresca e água limpa. Nós meninos, éramos trancados em casa, e, por “mode o perigo de a boiada estourar”, víamos o espetáculo pelas frestas, ouvindo o trotar, admirados; querendo ser boiadeiros. Do mundo de carros e arranha-céus, só o radinho SEMP ou ABC dava notícias, entre músicas de duplas sertanejas, que sabiam cantar.

 Num dia desses, vimos helicópteros baixar no campo de futebol. Soldadesca de verde-oliva, cheios de armas e desamor, desceram do “bicho” como quem quer, e queriam, amedrontar; impondo suas presenças em nome de presença-outra de quem, em palácios ocupados por Golpe, queria unificar o viver do país inteiro, inclusive o do povo dali. Dando suas ordens e fazendo-as ser cumpridas, pelo que a farda e as armas indicavam poder fazer com qualquer um, discordante. Sim, além de nós, rio-abaixo, no Xambioá, havia uma Guerrilha; cujos sujeitos, alguns deles, haviam passado por nossos territórios, ganhando simpatia e bem-querença, antes de irem para aquele destino. Gente inteligente, bem formada, de trato fino e respeitoso, a dispensar atenção e cuidados a todos; era difícil acreditar que, gente daquele jeito, parecida com a gente, nós, pudesse despertar tanto ódio no governo e nos soldados. Então, Comunista era daquele jeito?

    

E seguiu-se notícias da Guerrilha. Gente presa, sem saber porque. Gente de “roça-de-toco”, do cuidar do pouco gado, dono de bulixo, tudo sob tortura, pra dizer o que não sabia. Histórias fabulosas sobre uma tal Dina: mulher branca e bonita e valente, guerrilheira, que soldado nenhum, diziam, conseguia prender ou matar…

Tudo, todos, eram suspeitos – inclusive os padres e o Bispo querido. Foi quando criaram até uma tal “Polícia Carajá”; enfardando e dando armas e ordens para uns poucos indígenas daquele Povo, para difundirem, mediante procedimentos estranhos, exógenos e violentos, outro modo de ser nas aldeias. Talvez, sob alguma suspeita de que aquela gente Originária pudesse significar perigo de subversão àquela Ordem; da qual nem sabia existir, nem tinha entendimento da sua necessidade ou serventia. As Ditaduras enlouquecem as pessoas!

As casas eram reviradas pelo avesso, sem aviso nem mandado de juiz, por saldados sisudos, de poderes sem limites e perversidades de desalmado; uns sujeitos que pareciam nunca ter tido laços de afeição com ninguém. Assim, numa manhã, ouvimos a vizinha gritar: “Maria, os soldados estão descendo a rua!” Corre-corre dentro de casa, escondendo armas de caça: espingardas de cartuxos, carregados em casa, calibre 12, 20, 36; algum rifle 44 ou 45, “papo amarelo” e algum revólver 38. Porque, naquele tempo, quase todo mundo tinha, dessas armas, pelo menos uma em casa. Nos caramanchões ou latada, como se dizia, as armas eram escondidas, camufladas, entre as folhas de uva e de maracujá, às pressas; mas, de forma tal que, mesmo revirando cada escaninho da casa, inclusive as camas, cujos colchões eram jogados ao chão sem nenhum respeito, os brutamontes iam embora sem levar nada. Ria-se deles, depois.

Nascia e florescia ali, entre adultos e crianças, medo e aversão àquela gente…

Aprendi assim, ali e depois: tem-se que ter muito cuidado com o que se diz e faz, em face das crianças. Sabendo disso, naquele tempo, pais, mães e “mais velhos”, não diziam tudo, nem qualquer coisa, na frente de meninos e meninas. Mais de cinquenta anos passados, aquele grito de aviso solidário da vizinha, que já está em outra morada, ainda soa vivo, como aprendizado; que se fez indelével princípio didático-pedagógico, guardado para ter e ensinar aos demais terem “raiva e nojo” às ditaduras e ditadores!

João Guató

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