O Fim do Regime Sírio: A Nova Síria e Seus Desafios
O som das bombas já não ressoava mais nos bairros destroçados de Damasco, mas o eco das decisões geopolíticas ainda reverberava com força. A guerra civil que arrasou a Síria, com um saldo de quase meio milhão de vidas perdidas, parecia finalmente chegar ao fim, mas a queda de Bashar al-Assad não significava apenas o fim de uma dinastia autoritária que governava a nação síria há mais de 50 anos. Representava também a desintegração de um complexo tabuleiro de xadrez, onde potências globais e regionais disputavam o controle da região, deixando como herança uma Síria fraturada e incerta.
O regime de Assad, que sustentou sua permanência no poder a um custo imenso, não resistiu à pressão externa. Quando a guerra civil eclodiu, as potências internacionais se envolveram diretamente, como se o sangue sírio fosse o combustível de uma guerra fria em novo formato. A Rússia e o Irã, grandes aliados de Damasco, já não podiam mais arcar com os custos de um conflito que, além de devastar a Síria, também afetava suas próprias agendas. A Rússia, atolada na Guerra da Ucrânia desde 2022, viu seu prestígio global diminuir, e o Irã, em meio a tensões com Israel e o Hezbollah, perdeu sua principal linha de abastecimento militar. Era claro que não havia mais espaço para um regime isolado e fracassado, que, como uma pedra de amolar, desgastava a diplomacia e a influência de seus apoiadores.
Em Copenhague, na Dinamarca, o exílio sírio se fez ouvir. Bandeiras verdes, brancas e pretas agitavam-se ao vento, símbolos da oposição que, finalmente, começava a acreditar que o regime de Assad era coisa do passado. Para os sírios fora da pátria, a queda do ditador era, ao mesmo tempo, um momento de vitória e de luto. Vitória, porque o regime que os esmagou estava finalmente terminado; luto, porque o futuro de sua terra natal permanecia incerto, ainda à mercê das potências que sempre jogaram com os destinos da Síria.
A retirada de Assad do poder deixou uma lacuna, mas, paradoxalmente, também gerou um terreno fértil para novas alianças, novas disputas e, inevitavelmente, novos confrontos. O papel dos Estados Unidos, que apoiaram os rebeldes no início da guerra, seguiu uma linha sinuosa. Por um lado, ainda mantêm tropas no nordeste da Síria, protegendo campos de petróleo e combatendo os remanescentes do Estado Islâmico. Por outro, os Estados Unidos se veem agora diante da incerteza de quem tomará as rédeas de uma nação destroçada, sem saber se os novos líderes sírios poderão ser aliados ou mais um obstáculo nas relações com as potências regionais.
Já a Rússia, que tanto investiu em seu aliado sírio, viu seus interesses na região esfacelarem-se. Assad, agora exilado em Moscou, não era mais um peão útil. A retirada de Damasco foi como um sinal de derrota para o Kremlin, que agora terá de lidar com uma Síria fragmentada, onde seus postos militares no país podem não ser suficientes para garantir a projeção de poder no Mediterrâneo, que tanto lhe interessava.
Porém, talvez o maior derrotado nessa nova fase seja o Irã. O regime sírio, durante anos, serviu como um corredor terrestre para a transferência de armas e apoio logístico ao Hezbollah e outras milícias apoiadas por Teerã. A perda dessa conexão enfraquece não só a capacidade do Irã de manter sua rede de influência em torno de Israel, mas também mina sua posição estratégica na região. O Irã, que já enfrentava um isolamento crescente, agora se vê em uma posição ainda mais vulnerável.
Para Israel, a queda de Assad foi um acontecimento ambíguo. A ausência do ditador sírio, que sempre representou uma pedra no caminho para Tel Aviv, poderia ser vista como uma vitória. Mas o risco de que armas e munições químicas que antes estavam sob controle do regime agora caíssem nas mãos de grupos rebeldes – ou até mesmo de facções radicais – gerava uma inquietação ainda maior. Israel não poderia, em hipótese alguma, relaxar a vigilância sobre o que acontecia em sua vizinhança.
A Turquia, por sua vez, emergiu como uma das grandes vitoriosas. Desde o início da guerra, Ancara se manteve firme no apoio aos rebeldes, além de controlar uma parte significativa do norte da Síria. Agora, com a queda de Assad, seu papel na região se fortalece, mas o novo governo sírio, com suas próprias facções e rivalidades, apresenta um novo desafio. A Turquia terá que navegar nesse novo cenário, onde a oposição e as minorias sírias exigirão um papel maior na governança do país.
A União Europeia, por sua vez, viu o fim do regime de Assad com uma mistura de alívio e cautela. O discurso de líderes como Emmanuel Macron e Olaf Scholz focava na necessidade de proteção das minorias sírias, e na esperança de que a nova Síria fosse, finalmente, mais inclusiva. Mas a Europa também sabe que, após uma década de destruição, a reconstrução será um esforço colossal, que exigirá não só diplomacia, mas também uma abordagem prática de investimentos e apoio humanitário.
Entre tantos movimentos e recálculos, a verdadeira questão permanece: quem vai governar a Síria agora? Há quem diga que a nova liderança será fruto da coalizão dos rebeldes, mas essa coalizão é tão dividida quanto o próprio país. O futuro da Síria será decidido, sem dúvida, em um jogo de negociações difíceis, onde as lealdades podem ser fluidas e os interesses internacionais, volúveis.
No fim, a pergunta que paira no ar é: a Síria será reconstruída como uma nação unificada ou continuará a ser um campo de batalha de interesses externos e internos? E, mais importante, quem será capaz de evitar que a história se repita, que o sangue de mais um milhão de sírios seja derramado em nome de um novo jogo geopolítico? A resposta, por enquanto, é incerta. Mas o fim do regime de Assad foi, sem dúvida, um capítulo decisivo dessa história ainda por escrever.