O Icônico Coringa

O segundo filme Coringa: dois delírios lançado em 2024, traz consigo uma imersão ainda mais profunda na psique de Arthur Fleck, o infame vilão que, agora, se vê frente a um espelho que reflete não apenas seu rosto torturado, mas as múltiplas camadas de uma personalidade fragmentada. O que começa como uma jornada de dor e marginalização se torna um estudo do abismo humano, onde o duplo — o homem e o monstro — se entrelaçam de maneira quase indissociável. A obra, que já era uma reflexão sobre a desconstrução do ser, agora apresenta uma complexidade ainda maior, ao explorar as nuances de uma identidade dividida por traumas, ideologias e uma realidade implacável.

A Dupla Personalidade

Do ponto de vista da psicanálise forense, o que vemos em Coringa 2 não é simplesmente uma transformação do homem Arthur Fleck no vilão Coringa. É a evidência de uma dissociação profunda, uma ruptura no ego do protagonista. Freud nos ensina que o ego, na tentativa de lidar com a pressão interna e externa, pode fragmentar-se, criando diferentes facetas, quase como se o sujeito passasse a habitar em mais de uma identidade. No caso de Fleck, o Coringa não é apenas uma persona criada para fins de vingança ou manifestação de loucura, mas a personificação de uma faceta reprimida, um lado sombrio e caótico, que tenta lidar com o sofrimento de uma existência subjugada.

A dualidade entre Arthur e o Coringa não é apenas uma transição de identidade, mas uma manifestação de uma psicose em que as fronteiras entre o real e o imaginário se tornam difusas. A ideia de “dupla personalidade” é uma maneira simplificada de descrever a complexidade da psique humana, mas no caso de Fleck, é mais do que isso. A psicose manifesta-se aqui como uma tentativa de reinvenção do ser: o Coringa surge como uma defesa, uma resposta às frustrações do homem que, incapaz de encaixar-se nas normas sociais, se entrega a um delírio de poder e controle, um reflexo da realidade que ele foi forçado a negar. A dificuldade de Arthur em distinguir sua verdadeira identidade das diversas facetas que ele assume ao longo da narrativa — seja como o comediante fracassado, o criminoso marginal ou o messias distorcido da rebelião — é uma ilustração de como o eu se fragmenta quando exposto à dor insuportável.

Joaquin Phoenix: A Obsessão

A interpretação de Joaquin Phoenix, já indicada ao Oscar por sua performance no primeiro filme, evolui no segundo com uma intensidade ainda mais arrebatadora. Phoenix se entrega ao personagem de Arthur Fleck de uma maneira quase animalesca, explorando cada nuance de sua instabilidade mental. Seu rosto, ora torcido em um sorriso descontrolado, ora contorcido pela angústia, é o mapa de uma alma dilacerada. Ele não interpreta Arthur e Coringa; ele os vive simultaneamente. A atuação de Phoenix é uma transição orgânica entre o homem desespero e o monstro impiedoso, e nesse jogo de espelhos, ele nos faz questionar: qual das duas personalidades é mais real? A realidade que vemos através de seus olhos é uma distorção do que realmente ocorre, uma brincadeira com a verdade que o espectador, muitas vezes, se vê incapaz de diferenciar.

Ao longo do filme, há um jogo meticuloso entre controle e descontrole, onde Phoenix, por meio de seu corpo e de sua voz, nos conduz pelas oscilações da loucura de Arthur. Ele é um artista da dor, capaz de transitar entre a fragilidade e a violência com uma naturalidade quase desconcertante. Esse processo de “dissolução” da identidade, que Phoenix tão bem executa, é, em si, uma metáfora para o próprio processo criativo: o ator, ao se tornar o personagem, explode a casca do eu para abraçar outra vida, uma vida que também, de certa forma, está em ruínas.

A Linguagem Musical

Se a atuação de Phoenix é um estudo da psicologia humana, a trilha sonora de Coringa: delírio a dois é um estudo da alma. A música se torna, nesse contexto, uma metáfora para a dissonância interna de Arthur Fleck e seu alter ego, Coringa. A composição de Hildur Guðnadóttir, que já encantou no primeiro filme, continua a nos envolver com uma combinação de sons perturbadores e delicados, criando um clima que flerta com o surreal. A melodia, ora sinistra, ora suave, reflete a instabilidade do personagem, criando uma atmosfera onde a beleza se mistura com a dor.

“Coringa: delírio a dois trás Folie à Deux” com uma promessa irresistível: não apenas expandir a mente perturbada de Arthur Fleck (interpretado mais uma vez por Joaquin Phoenix), mas também trazer para o centro do palco uma figura igualmente instável e fascinante: Harley Quinn, interpretada por ninguém menos que Lady Gaga. Juntos, esses dois personagens formam uma dupla que desafia os limites da sanidade, e a química entre Phoenix e Gaga, um espetáculo de intensidade e loucura, promete criar uma história ainda mais tortuosa e encantadora.

A escolha de Lady Gaga para interpretar Harley Quinn é, sem dúvida, uma das maiores surpresas e expectativas para este filme. Conhecida por sua habilidade vocal única e sua presença de palco avassaladora, Gaga tem agora o desafio de transitar entre a delicadeza de sua música e a loucura de sua personagem. A atriz, que já demonstrou seu talento em papéis dramáticos em filmes como Nasce uma Estrela, parece ser a escolha ideal para interpretar uma das personagens mais complexas e instáveis do universo DC. E é justamente essa habilidade de Gaga de transformar emoções à flor da pele em arte que a torna perfeita para viver Harley Quinn, um ser que dança na linha tênue entre a vulnerabilidade e a violência.

Mas, ao contrário do que se poderia imaginar, Coringa: delírio a dois não a coloca apenas como atriz. Como no primeiro filme, a música é um elemento crucial, e Lady Gaga, com sua voz poderosa, se torna não apenas a parceira de Joaquin Phoenix, mas também o reflexo musical da psique fragmentada dos dois personagens. A beleza da melodia, misturada à dissonância e à tensão das cenas, eleva o filme a um nível ainda mais visceral, como se a música se tornasse uma extensão da loucura que toma conta da cidade de Gotham e dos próprios protagonistas.

A própria presença de Harley Quinn no filme oferece uma nova perspectiva para o personagem de Arthur Fleck. Se no primeiro filme vimos um homem esmagado pela sociedade, em Coringa 2, Fleck encontrará uma companhia igualmente torturada — uma alma gêmea que compartilha de seu sofrimento e de sua interpretação distorcida da realidade. A relação entre os dois é, sem dúvida, uma das mais fascinantes da cultura pop, marcada por uma mistura de atração, manipulação e, claro, loucura mútua. Como aponta o título Folie à Deux (que em francês significa “loucura a dois”), o filme explora como duas mentes, em sua fragilidade e desespero, podem se unir para criar uma fantasia comum — uma realidade delirante que ultrapassa a compreensão racional.

Phoenix, que já havia mergulhado nas profundezas da alma de Fleck no primeiro filme, parece estar mais uma vez pronto para explorar sua relação com o caos e a violência interior. Sua atuação como Coringa continua a ser uma das mais fascinantes do cinema contemporâneo, e sua interação com Gaga promete ser um espetáculo de contrastes: a fragilidade de Fleck diante da força selvagem de Quinn, uma figura que ao mesmo tempo é ingênua e devastadora. Juntos, eles criam uma dança de almas conturbadas, como se o filme fosse uma peça de teatro com cenas improváveis e imprevisíveis.

É importante notar que, apesar da expectativa gerada por Lady Gaga, as críticas indicam que a atuação da cantora-atriz não ocupa tanto espaço quanto se esperaria, sendo mais limitada pela natureza da produção. Porém, mesmo quando Gaga não está dominando a cena com sua intensidade vocal, sua presença inebriante adiciona uma camada de complexidade ao filme, fazendo com que Coringa 2 seja uma experiência que vai além da narrativa e se transforma em uma reflexão sobre a própria loucura. Como uma canção dissonante que não se encaixa, mas que, de alguma forma, faz sentido, o filme nos leva a questionar o que é real e o que é criação, onde cada nota, cada movimento, cada cena é uma explosão de emoções conflituosas.

Gaga, com sua habilidade única de transitar entre diferentes dimensões da arte, empresta à Harley Quinn uma melancolia sedutora, que vai além da vilã que todos conhecemos. Sua Harley não é apenas uma parceira de crimes, mas uma mulher à procura de um sentido no caos, uma alma perdida que, ao lado de Fleck, dança à beira do abismo. E é nesse jogo de espelhos e delírios que Coringa 2 encontra sua verdadeira beleza: não na perfeição, mas na beleza que emerge da destruição, da loucura e do incerto.

Em última análise, o filme é um delírio compartilhado, uma reflexão sobre a insanidade humana e a arte como forma de sobrevivência, onde o Coringa e a Harley Quinn são mais do que apenas monstros ou vítimas. São duas almas que, à sua maneira, tentam se encontrar — e talvez, no processo, nos encontrem também.

Em um dos momentos mais emblemáticos do filme, vemos Arthur dançando nas ruas de Gotham ao som de uma peça clássica, como se aquele gesto de movimento representasse a última tentativa de libertação de sua alma. A música aqui não é apenas um pano de fundo, mas a tradução sonora de uma explosão interna, do artista que se vê, finalmente, diante da própria criação. O Coringa, nesse momento, torna-se o próprio espetáculo, e a dança se transforma em um reflexo de sua confusão mental: um movimento instintivo de quem não sabe mais onde começa e onde termina sua própria identidade. A beleza da cena, que poderia ser uma pura manifestação de caos, revela a fragilidade do ser humano diante de seu próprio processo de autodestruição.

A música também se faz presente nas transições entre o real e o ilusório. Em certos momentos, o som parece distorcer-se, como se a mente de Arthur estivesse filtrando a realidade através de sua própria percepção distorcida. A desconstrução da harmonia musical reflete a desconstrução da sua personalidade, que se fragmenta em várias camadas.

Considerando

Coringa 2 não é apenas uma sequência de um filme sobre vilões. É uma jornada pela mente humana, uma exploração dos abismos da identidade e da criação. A dualidade de Arthur Fleck e Coringa é mais do que um transtorno psicológico; é a luta do ser humano contra sua própria dor e a busca desesperada por uma resposta que, muitas vezes, vem na forma de uma alucinação. A atuação de Joaquin Phoenix transcende as limitações do personagem, oferecendo uma visão visceral de uma alma fragmentada. E a música, com sua beleza perturbadora, reforça a ideia de que, no caos, também existe um tipo de arte — a arte de viver, ou de sobreviver, nos limites do abismo.

O filme é, de fato, uma obra de beleza singular, assim como a própria vida, com suas complexidades e nuances. As críticas que surgem, muitas vezes, vêm de quem não consegue compreender a profundidade da narrativa e as camadas que ela oferece, ou de quem falha em realizar uma leitura mais cuidadosa da obra.

João Guató

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