O Mágico Mundo do Rústico Empreendedor Mundico

Prof. Dr. Elismar Bezerra Arruda

Lembro de uma história, contada pelos “mais velhos” pra nós, crianças, sobre a construção do futuro; que ouvíamos aprendendo, sem saber o que era futuro. Não sabíamos que era uma construção pedagógica dos nossos pais, avós e parentes mais próximos, na tentativa de orientar as nossas concepções de mundo e, assim, capacitar-nos para a elaboração de um novo vir a ser nosso. Um esforço amoroso, lúdico, para nos fazer entender, e convencer-nos, da possibilidade de sermos elaboradores do próprio futuro.

Dizia da criança que, com um ovo de galinha, que ganhou da sua madrinha no aniversário, formou uma fazenda de gado; depois de chocar o ovo, formar uma criação de galinhas, que vendeu e comprou porcos, que fez multiplicar, vendeu e comprou gado: ficou rica. A gente cria naquilo, porque, vendo as galinhas rodeadas de pintinhos e os chiqueiros com porcos, achávamos que, para uma fazenda de gado, era questão de tempo para fazer os bichos se multiplicarem. Mas, nenhuma criança, que eu tenha conhecido, tentou esse estratagema pra ficar rica; e se tentou, deu em nada – e nada disse a ninguém, de sua frustração.

Descobri depois, que aquela história e as fábulas todas não brotam do acaso: nascem das experiências, das dores, das nossas alegrias e sonhos; de forma que, por essa conexão com a vida, vão se revestindo de realismo até se afigurarem como elemento de afirmação e difusão de determinada moral – especialmente quando determinado fato se assemelha à fábula. Como o caso do Mundico, que conheci quando ele já era “bem de vida”, rico, para os padrões econômico-sociais do Araguaia, dos anos de 1970.

Mundico chegara ali, quando o lugarzinho contava poucas famílias, todas tangidas de suas origens por conta de vida ruim: falta de trabalho, algum entrevero, um desmantelo acabado com faca ou bala. Todas buscando vida melhor, notadamente na segurança de um trabalho, de uma ocupação, capaz de produzir o conforto de sertão ribeirinho: casa pra morar, comida boa e farta e, no domingo, poder ir à igreja com as crianças bem vestidas e educadas. Sozinho, sem mulher e filhos, Mundico se arranchara numa quase tapera, feita de moradia e transfeita numa venda, bolichinho miúdo, com uma prateleira mal sustentada, uns dois ou três pacotes de bolachas, outros de açúcar, três ou quatro garrafinhas de guaraná, mais uma ou outra coisinha de pouco valor…

Mundico supria seu estoque, conforme ia vendendo – talvez, tenha inventado, sem saber, o sistema just in time. Comia pouco, comida regrada, o suficiente para controlar a fome sem consumir o patrimônio com gulodices; pois, seu negócio tinha a dimensão de si, do corpo e das necessidades mais comezinhas, cujo espírito de comerciante, tratava de moldar em limitações de poupança desmedida. Isso foi no início, anos 60, 70 – quando os sertões do Brasil eram cheios de lonjuras, nas distâncias de caminhos de chão poeirento, vencidas a pé. O tempo ali, tinha paciência de esperanças bíblicas; quando a serventia de relógio, era mais para enfeitar o braço ou a sala, que medir as horas. Quando os meninos e meninas brincavam de coisas chãs, feitas com as próprias mãos e cabeça – como o grude para colar as folhas do papel de seda, na feitura de um papagaio coloridíssimo, que “voava”, enfeitando o céu azul do outono daquele tempo e lugar. A vida era urdida nos vãos dos dedos e com olhar de ternura…

Nos fins dos anos 70, com as cãs já ressaltantes, seu patrimônio era invejado: a acanhada venda, o bolicho, evoluíra para uma Casa Comercial de secos e molhados, com amplo salão e depósito, onde vendia do “sal ao sabão”: brinquedo, roupa, fumo, tecido, bicicleta, açúcar, cachaça, sapato, mala, cerveja. Geminada, a casa de morar, boa, sala no vermelhão bem encerado e escovado, bem construída, boa pintura, sofá e mesa, um rádio grande, exibido sobre o balcão de madeira (que “pegava” as rádios do mundo inteiro), geladeira à querosene, bicicleta bem enfeitada (com selim macio, espelho, buzina e dínamo para alumiar a rua sem energia elétrica), algum gado e mulher sem compromisso de matrimônio, de se ver todo dia, o dia inteiro…

Mundico seguia com fama de “mão de vaca”, não gastava. O povo comentava: como pode, um homem “tão bem de situação”, viver assim, como se fosse pobre. Sabe-se lá, como era ele com seus consigos: o que dizia de si, seus medos, suas tristezas, suas alegrias, nas horas mais íntimas dele sozinho. Haveria alegria naquilo de ficar ali, sentado atrás do grande balcão de madeira, esperando compradores para suas mercadorias? Tinha satisfação além do comerciar, em ver e falar com as pessoas, em dizer os preços e qualidades das coisas que vendia? A solidão é um mistério, que tem lá seus gozos – mas, é coisa de não se revelar pra ninguém!

Acho que Mundico nunca entrou num banco. Nunca tomou dinheiro emprestado, gastava no tamanho do seu ganho: investia tudo, livrado apenas a comida sem sobejos – ainda assim, não era magro. Investia tudo no seu negócio, porque este tinha as dimensões de suas intimidades: a casa comercial era parte da casa residencial, vice-versa, a vida social era estar ali: ora conversava e se ria com um que vinha tomar uma pinga, uma cerveja, à tardezinha; outrora, com outro à falar da notícia dada na Rádio Nacional; noutra vez, sobre o recado dado na Rádio Brasil Central para gente conhecida, de alguém que viajara à Goiânia pra tratamento. A vida leve parece gostar de ser gastada assim…

Um dia Mundico não amanheceu para aquelas coisas todas. A porta da casa de morar não se abriu, nem as da parte do comércio se abriram – fecharam-se pra sempre. É como se tivesse se absorvido em si, como num encantamento e, em silêncios de gozosos mistérios, talvez tenha dito às coisas que construiu e fez multiplicar: vou embora, fiquem como prova do que fiz por mim. De seus últimos instantes, ninguém ouviu um ai, nem adeus. Não sei se tinha alguém para saudar assim, derradeiramente; nem sei se alguém chorou. Quem sabe, uma daquelas amigas de ocasião, quando soube, tenha chorado a solidão que pressentira em sua cama soturna. Ninguém sabe…

Mas, apareceu parente; que fez o enterro, com os olhos compridos nas vistosas coisas deixadas; agora, sem serventia pra Mundico. Baixado o corpo na sepultura, tudo que foi juntado no correr de décadas, à custa de algumas bolachas água e sal e meia garrafinha de guaraná maçã como almoço, tudo, foi esgarçado sob o domínio de quem não gastou um átimo de vida para ter aquela fortuna. A fortuna de Mundico tornou-se conforto breve de perdulários, que nem uma lápide mandaram fazer…

Tivesse uma profissão, talvez Mundico houvesse construído família; vivido o dia-a-dia, se dando ao trabalho, dependendo do salário para manter todos os seus. Sem saber fazer coisas, mercadorias, não pode se empregar nos negócios de algum patrão, nem ganhar salário. Sem um ofício, teve que se dar ao comércio de coisas feitas por outros. A precisão o fez empreender suas forças na construção de saberes e da disciplina para um viver espartano, um sofrer silente num regramento em tudo – que, ao fim, rendeu-lhe riqueza que deixava sem herdeiro que a merecesse.

A casa comercial sumiu, as mercadorias, as prateleiras, as cadeiras pros clientes e amigos, a vara de metro pra medir tecido, a balança de ponteiro grande e pesos com aferimento da sua consciência – o balcão se desfez, com suas tábuas pra outras serventias. Do rádio ninguém sabe. O vermelhão do piso, escovado e brilhoso, desbotou-se em algum monturo – onde os restos da casa jazem…

João Guató

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