O Trem e a Lacraia
Quando o trem de ferro descarrila, sua estrutura de aço e ferro não se recompõe sozinha. Ele é uma invenção humana, uma máquina que, por mais complexa que seja, não tem vida, não tem alma. A máquina, apesar de sua força e engenhosidade, não age por si mesma. Fica ali, parada, esperando ser consertada, como algo sem destino, sem essência. E isso, claro, se deve ao fato de que a máquina, por mais que imite o movimento da natureza, não faz parte dela. Ela não tem a graça do espírito. É só ferro, parafuso e engrenagem.
Mas, se a máquina não se recompõe, a lacraia, ah, a lacraia, é outra história. Eu me lembro bem da infância, quando as lacraias eram para mim algo que transcende o simples fato de ser um inseto rastejante. Elas eram, para os meus olhos de criança, um trem. Não um trem qualquer, mas um trem com muitos vagões, movendo-se de maneira ritmada e fluida, como se fosse parte de um universo maior, mais orgânico, mais profundo. Cada segmento do seu corpo parecia puxar o seguinte, e, ao se mover, parecia carregar um pequeno vagão, como se cada parte dela fosse uma unidade conectada a algo maior. A lacraia, ao contrário do trem de ferro, tinha algo mais: ela tinha ser, tinha movimento, tinha uma destinação de Deus que a tornava viva, como se seu corpo fosse composto de uma matéria não vista, algo além da carne, uma essência que a tornava mais do que apenas um ser mecânico.
Naqueles momentos, parecia que a lacraia não precisava de ninguém para colocá-la de volta nos trilhos. Ela seguia o seu caminho, com suas centenas de pernas, como se soubesse perfeitamente onde ir. Ela não estava presa a nenhuma construção humana. A máquina do trem poderia parar diante de um descarrilamento, mas a lacraia nunca se detinha. Ela era viva e seguia, sempre seguindo, como um eco da própria natureza. Cada movimento da lacraia era uma lição: a lição de que, no mundo natural, a vida não é algo que depende de invenções humanas para seguir seu curso. Ela nasce de algo maior, de algo que não pode ser fabricado ou interrompido por mãos de homens.
É curioso pensar que, quando criança, eu via a lacraia como um trem, como uma máquina com alma. Hoje, ao revisitar essa imagem, me dou conta de como a infância tem esse poder mágico de transformar a realidade, de tirar o véu das coisas e mostrar a elas uma essência que nem sempre conseguimos ver na vida adulta. Para a criança, tudo tem um propósito e uma ligação invisível com o todo. O trem de ferro, por mais belo que fosse, estava sempre limitado pela sua construção; a lacraia, em sua simplicidade, era um reflexo da liberdade da vida. Ela seguia porque era parte de algo maior, algo que não podia ser detido pela mão do homem.
O trem de ferro, afinal, não passa de uma invenção, uma adaptação humana para imitar a natureza. Mas a lacraia… A lacraia é o próprio movimento da vida. Ela não é fabricada, ela é simplesmente ser, e sua existência, sem comparações, é a verdadeira pedagogia da natureza: um movimento que segue seu próprio curso, que vai além da razão, que não depende de maquinários ou engenharias, mas da força do ser, pura e simples.
Na infância, com meus olhos de criança, eu compreendia intuitivamente isso: a lacraia não era uma máquina. Ela era uma parte do mundo que se movia por si mesma, como uma força da natureza. E isso, talvez, seja o que a criança sabe e o adulto esquece: a verdadeira máquina não é a feita pelo homem. Ela é a vida, em todos os seus movimentos, mesmo nos mais simples e insignificantes, como o corpo de uma lacraia que segue, com seus vagões invisíveis, o caminho do destino.