Quando o Dono Cala, o Rio Fala
Na aldeia, o velho Xamã sempre dizia que o rio nunca deixa de falar. Mesmo quando tudo parece silêncio, ele murmura suas histórias para quem sabe escutar. Mas na cidade, o silêncio não é dos rios, é das vozes abafadas por máquinas, relógios e discursos que ecoam como verdades absolutas.
A cidade, com seus prédios cinzentos e suas rotas traçadas, tem dono. E o dono dita as regras: trabalhar, consumir, obedecer. Quem nasce ali aprende cedo que viver é seguir o caminho que já vem riscado no chão. Qualquer passo fora da linha é visto com desconfiança.
Ailton Krenak, um dos poucos que ousam escutar o rio em meio ao concreto, nos alerta:
“Não dá para ouvir uma frase fascista e outra trabalhista sem perceber a cumplicidade ideológica que elas implicam.”
O mundo do trabalho, com sua promessa de dignidade, não passa de uma máquina que transforma a vida em mercadoria. Para ele, os pobres têm destino certo: serem pobres, sempre. Esse mundo não foi feito para libertar; foi feito para aprisionar.
A Colônia que Nunca Partiu
O problema, aponta Krenak, é que mesmo quando acreditamos estar livres, ainda seguimos carregando o pensamento colonial. Repetimos palavras sofisticadas, citamos teóricos estrangeiros, fazemos teses que parecem rebeldes, mas, no fundo, continuam servindo ao mesmo dono.
É como tentar dançar com os pés amarrados. Chamamos isso de crítica decolonial, mas esquecemos que o colonizador não mora apenas fora. Ele está dentro, impregnado na forma como pensamos, como nos relacionamos, como sonhamos.
— Não precisamos ser “decoloniais”, precisamos ser contracoloniais — nos diz Krenak, com um sorriso que mistura brincadeira e sabedoria.
Porque o pensamento colonial não se desfaz apenas com palavras bonitas. Ele se desfaz quando paramos de imitar a fala do dono, quando deixamos de buscar aprovação nos olhos de quem sempre nos quis servos.
O Rio Ensina
Na aldeia, o rio ensina que o tempo não corre em linha reta. Ele é cíclico, vai e volta, se renova. Na cidade, o tempo é imposto pelo relógio do patrão. Mas e se, por um momento, parássemos de olhar para o relógio e escutássemos o rio?
O pensamento indígena, que Krenak nos convida a revisitar, não se preocupa em competir, em acumular, em vencer. Ele se preocupa em viver em harmonia — com a terra, com o outro, consigo mesmo. É um pensamento que não busca destruir para construir, mas sim transformar sem esquecer as raízes.
Descolonizar é Viver
Descolonizar não é apenas um exercício intelectual. É uma prática cotidiana. É questionar o modo como trabalhamos, como nos alimentamos, como andamos pela vida. É recusar a lógica que transforma a natureza em recurso, o outro em inimigo, e a vida em produto.
O dono quer que sejamos dóceis, que aceitemos nosso destino de engrenagens obedientes. Mas o rio, ah, o rio quer que sejamos livres.
Então, talvez seja hora de calar o barulho das máquinas, desacelerar o passo apressado, e escutar o rio. Porque quando o dono cala, o rio fala. E ele sempre nos convida a lembrar: viver não é obedecer. Viver é resistir.